Meritíssimo
juiz Christopher Alexander Roisin, da 11ª Vara Cível de São Paulo:
Venho
escrever esta mensagem a Vossa Excelência para lhe lembrar uma coisa que
ser-lhe-á (copyright da mesóclise Jânio Quadros...) muito importante para a sua
carreira no Poder Judiciário: o Corpus
Juris Civilis foi compilado pelos romanos para que coisas venham a ser decididas
pelo arcabouço do Direito, não pelo preconceito pessoal.
Acho que
posso falar disso, no caso em pauta, com alguma neutralidade, porque, se Vossa
Excelência me permite a vênia, não vou muito com os cornos da escritora e
roteirista Fernanda Young. E já era mais do que previsível que essa ilustre
senhora enfrentaria um arranca rabo em um tribunal, seja como querelada – isto é,
alguém iria processá-la – seja como querelante – isto é, ela iria processar
alguém como no caso que o Meritíssimo julgou recentemente. Isto porque, com sua
habilidade (SIC) habitual de falar as coisas antes de pensar, ela deve ter
conseguido a façanha de arrumar desafetos a quilo.
Só para que
Vossa Excelência possa fazer uma ideia, gostaria de lembrar (e lembro-me muito
bem) de uma edição do programa Saia Justa,
do canal GNT, em 2003. Na época, Fernanda Young fazia parte do time de
comentaristas do programa, ao lado de Monica Waldvogel, Marisa Orth e Rita Lee.
A certa altura, passou-se a falar da invasão do Iraque por George W. Bush
(George W. Busha de Canhão, para os íntimos das indústrias de petróleo e de
armas norte americana...), sob pretexto de existência de armas de destruição em
massa que o ditador do Iraque Saddam Hussein teria escondidas (quando, na
verdade, não tinha nem sequer um traque de São João, depois das guerras
Iraque-Irã, nos anos 1980, e da guerra do Golfo, em 1990/1991...). Mais
especificamente, uma foto que correu o mundo e comoveu meia humanidade: um
menino iraquiano de uns 11 anos, que perdeu a família e o braço, por conta de
uma das bombas de fragmentação dos americanos.
Quer
dizer... todo mundo menos Fernanda Young, de acordo com relato do site do Centro de Mídia Independente (CMI):
Fernanda Young, sempre ágil e expressiva, não perdeu tempo:
dobrou os braços e, simulando ser maneta, começou a rir do garotinho, dizendo
coisas como: "ah, aquele menino?". Depois, para mitigar um pouco a
surpresa estampada nas caras das outras participantes e para não deixar o lado "polêmico"
de lado (afinal, e como ela mesma diz, trata-se de uma "intelectual que lê
Schopenhauer"), Fernanda começou a dizer que há uma grande
"euforia" em torno dessa foto (creio que ela quis dizer que há um
grande "alarde") e que, afinal de contas, há pessoas sofrendo em
todos os lugares do mundo (sim, há pessoas sofrendo em todos os lugares do
mundo, mas não vejo como isso pode tirar a importância da foto).
Mas a 'escritora' não parou aí. No mesmo bloco em que tirou sarro do garotinho, ainda conseguiu dizer que o povo iraquiano mereceu o ataque americano, porque não passa de "um bando de velhos" e "machistas" (N.R.: Como se os americanos – especialmente os eleitores de Donald Trump – não fossem machistas ao quadrado, né Fernandinha?) e que, além disso, estava "cagando para a Mesopotâmia". Com essa, Fernanda provou, definitivamente, que a ignorância e a burrice podem, sim, fazer uma pessoa tornar-se perversa e asquerosa.
E, pela primeira vez na vida, assistir um programinha de TV me deixou de estômago embrulhado. Nenhum dos apresentadores do Cidade Alerta jamais conseguiu me chocar tanto quanto Fernanda 'Jovem' rindo do menino iraquiano. E, com o perdão da palavra, imagino que nem o adolescente mais escrotamente egoísta e chulo conseguiria ser tão insensível quanto ela.
Mas a 'escritora' não parou aí. No mesmo bloco em que tirou sarro do garotinho, ainda conseguiu dizer que o povo iraquiano mereceu o ataque americano, porque não passa de "um bando de velhos" e "machistas" (N.R.: Como se os americanos – especialmente os eleitores de Donald Trump – não fossem machistas ao quadrado, né Fernandinha?) e que, além disso, estava "cagando para a Mesopotâmia". Com essa, Fernanda provou, definitivamente, que a ignorância e a burrice podem, sim, fazer uma pessoa tornar-se perversa e asquerosa.
E, pela primeira vez na vida, assistir um programinha de TV me deixou de estômago embrulhado. Nenhum dos apresentadores do Cidade Alerta jamais conseguiu me chocar tanto quanto Fernanda 'Jovem' rindo do menino iraquiano. E, com o perdão da palavra, imagino que nem o adolescente mais escrotamente egoísta e chulo conseguiria ser tão insensível quanto ela.
Isso mesmo:
a mesma hipocrisia (se Vossa Excelência me permitir o termo) escrota deste
momento solene. Nenhum homofóbico sequer doou um centavo para combater a fome
do mundo, mas trouxeram à baila o problema para absolver-se do fato de que são
homofóbicos e de que são contra o casamento LGBT. Mas deixemos isso pra lá e
fechemos o parêntesis.
Até porque,
como se diz na minha terra: "Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra
coisa".
Fernanda
Young tem este hábito de falar antes de pensar, mas ninguém (nem mesmo eu ou
Vossa Excelência) pode impedi-la de fazê-lo. Primeiro, porque a Constituição
Federal é clara, em seu Artigo 5º, inciso IV: "é livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato". E ela não faz diferenciação entre
opiniões de pessoas que pensam antes de falar e as de outras que falam antes de
pensar. Segundo, porque este princípio atende o que Voltaire disse certa vez,
em meados do século XVIII: "Não concordo com uma palavra do que dizes, mas
defenderei até a morte seu direito de dizê-las".
Por fim, quando
Fernanda Young diz o que quer dizer (pensando antes ou não) ela o faz botando o
seu nome e a sua cara para bater, ao contrário de Hugo Leonardo de Oliveira Correa, de 37 anos – ele mesmo, o querelado
deste processo que Vossa Excelência julgou – que se escondeu atrás de um perfil
fake para ofender a querelante.
(Para quem não conhece a história: o tal Hugo Leonardo usou um perfil fake
no Instagram para xingar Fernanda Young, entre outras "gentilezas",
de "umazinha",
"pau mole", "puta que te pariu", "viadinho" e "vadia lésbica". Para qualquer idiota misógino – querelado
ou não – qualquer mulher livre em plena atividade criativa e livre para falar o
que quiser é uma "vadia" – que, para ele, é sinônimo de
"puta". O que implica em duas desinformações básicas do idiota.
A primeira: se a "ideia" foi comparar
Fernanda Young a uma prostituta, é porque ele não sabe como é dura a vida do
que muitos cretinos chamam de "moças-de-vida-fácil" - e a vida na
prostituição pode ser tudo, menos fácil para as prostitutas.
A segunda: Fernanda é
casada há uns bons 24 anos com Alexandre Machado, com quem tem quatro filhos –
logo, "lésbica" ela não é. (Seria ela bissexual? Não sei, nem quero
saber, pois a vida íntima de Fernanda não é da conta de ninguém, nem deste
escriba.) E ainda que fosse lésbica: isso justificaria tamanha ofensa pessoal?
Noves fora os evangelicuzinhos e bolsonaretes, desde quando uma mulher que ama
outras mulheres é uma... como é que ele disse?... ah, sim... "vadia"?)
Só que
perfis fakes não são tão seguros para
caluniadores. Bastou um requerimento judicial às empresas operadoras das redes
sociais para Fernanda achar o IP do jenio
(assim mesmo, sr. revisor, obrigado) e leva-lo à justiça – não só para obter a
reparação que a lei pode lhe conceder, mas também para revelar a verdadeira
identidade do cretino agressor.
Dois anos
depois, Vossa Excelência promulga a sentença. o tal Hugo Leonardo é
condenado e deve pagar uma indenização a Fernanda Young... só que bem menor do
que a querelante pediu: R$ 5 mil. Certo, sei que isso faz parte: muitas vezes,
juízes como Vossa Excelência podem diminuir o valor da indenização pretendida,
por achar que a ofensa não foi grande.
Infelizmente,
não foi esta a razão apontada por Vossa Excelência, e sim... a moral da
querelante Fernanda Young, como reza o texto abaixo, extraído de sua sentença
(os grifos são meus):
A valor (SIC) leva em conta ainda o fato da autora ter
artisticamente posado nua, de modo que sua
reputação é mais elástica, inclusive porque se sujeitou a publicar
fotografia fazendo sinal obsceno (...), publicou fotografia exibindo os seios (...)
e não se limitou a defender-se, afirmando que terceiros seriam “burros” (...)
Ora, uma mulher com tantos predicados como a autora afirma
possuir deveria demonstrar, porque formadora de opinião, uma pouco mais de
respeito. Há valores morais que devem governar
a sociedade e que, no mais das vezes, nos dias que correm, são ignorados em prestígio a uma pretensa
relatividade aplicada às ciências sociais, geradora do caos atual.
Vamos ver
se eu entendi bem o pensamento de Vossa Excelência. Quer dizer que o fato de Fernanda
Young ter posado nua para a edição de novembro de 2009 da revista Playboy (na época, editada pela Editora
Abril) desvaloriza a pessoa da querelante e a sua causa?
Bem,
Meritíssimo, como diria Jack, o Estripador, vamos por partes.
Primeiro, a
visão de Vossa Excelência a respeito da moralidade de uma mulher a respeito de ensaios
de nudez feminina. Será que não existem outras características que possam
compor a moralidade de uma pessoa do que esta se mostrar nua ou não?
Para
registro, os objetivos principais de tais ensaios de nu feminino são (óbvio
ululante) a fruição erótica e (esta predominante) estética do corpo da mulher. Até
porque a nudez feminina (e masculina também, sabia?) é objeto estético da arte
há séculos.
Neste caso,
o surgimento da revista Playboy, em
1953, significou um novo paradigma para a nudez feminina. Depois de seu
surgimento (e de outras que vieram depois), arte e erotismo (que é coisa
diferente de pornografia, se vossa Excelência não sabe...) tornaram se mídia de
massa. Antes, ela se dividia entre a pornografia mais crua e a arte de
vanguarda.
Não, não
ofenderei Vossa Excelência com um exemplo de fotografia pornográfica dos
séculos XIX e da primeira metade do século XX (até porque não procurei). Mas
apresento-lhe um exemplo de arte de vanguarda a partir da nudez feminina: Le Violon d'Ingres, de Man Ray, com Kiki
de Montparnasse.
(Curiosidade:
a inspiração para esta foto experimental de vanguarda – dois efes – orifícios ou aberturas acústicas
em forma de f que permitem aos sons
amplificados pelo corpo do instrumento, atingir o espaço externo e finalmente
os nossos ouvidos – desenhados no negativo da foto sobre o belo dorso de Kiki –
vem desta expressão idiomática francesa: Le violon d’Ingres é uma ocupação ou hobby de um artista plástico em suas horas
de ócio. No caso de Ingres (1780-1867), era tocar
violino. Um dia, Kiki – modelo de diversos
artistas plásticos e outras fotos de Man Ray – teve um arranca-rabo com ele, então seu amante,
reclamando que ele não se importava com ela, que ele a considerava um violon d’Ingres – ou seja, uma mera
distração para o tempo livre de Man Ray. Bastou isso para que o próprio Man Ray fizesse a foto. Fim do parêntesis.)
Le violon d'Ingres, Man Ray (1924 – Getty Museum)
Assim no
chutômetro, Playboy publicou desde
1953 cerca de 2304 ensaios de mulheres nuas. Só na edição brasileira – então editada
pela Editora Abril a partir de 1975, mas que só assumiu o nome Playboy a partir de 1978 – cortesia do
falso moralismo do regime militar, que baniu a Playboy norteamericana do país em 1970 – e até lá publicou como Revista do Homem, ou simplesmente Homem – foram 1476 mulheres (modelos,
atrizes, personalidades etc.) que posaram nuas para a revista. Fica a pergunta:
SERÁ QUE A REPUTAÇÃO DE TODAS ESTAS MULHERES É "ELÁSTICA" (ou baixa,
que é o que Vossa Excelência queria dizer) SÓ PORQUE POSARAM NUAS PARA A
PLAYBOY?
E,
repetindo: será que não existem outras características que possam compor a
moralidade de uma pessoa do que esta se mostrar nua ou não?
Talvez
pudesse resumir isso com a resposta de uma pessoa no facebook a uma"manchete indignada" (assim mesmo, sr. revisor, entre aspas, obrigado) de um site de "notícias" (assim mesmo etc., obrigado) meio que extremo-direitista (e meio covarde também, já que não traz o expediente comseus redatores – por que será?) chamado NoticiasRJ, que fala de uma performance ocorrida no pátio externo do Museu de Arte Contemporânea (MAC), de Niterói (RJ), nodia 18 de junho: de surpresa, estudantes de Artes da Universidade FederalFluminense (UFF) fizeram a tal performance, que consistia na depilação de umajovem na frente dos frequentadores do MAC... nua. Não foi
necessariamente foi uma defesa da performance (e convenhamos, eu, este
facebookiano e, se bobear, as torcidas do Flamengo e do Corinthians não acharam
uma ideia tão original assim), mas da própria nudez, porque a"manchete" estava indignada pela nudez em si.
Isso está longe de
ser a manifestação artística mais bonita que já vi na vida. Longe mesmo. Mas:
- Nudez é arte
desde os tempos mais primórdios
- O museu é de arte contemporânea. Quer ver arte renascentista, neoclássica ou barroca, vai pra outro museu
- "Isso não é arte".
- O museu é de arte contemporânea. Quer ver arte renascentista, neoclássica ou barroca, vai pra outro museu
- "Isso não é arte".
Quem define o que é arte e o que não é? Eu? Você? E se for
arte, sim? Um mictório no meio de uma galeria é arte?
- "Tinha criança no local"
- "Tinha criança no local"
E criança precisa ser protegida de nudez desde quando?
- "Atentado ao
pudor"
Olha, tem gente que acha que mãe amamentando em público é
atentado ao pudor. O que é pudor? Por que um homem sem camisa na praia não
atenta contra o pudor?
- "Mas ela estava
pe-la-da".
Sim, já viu estudante de arte desenhando nu artístico? Uma
mulher pelada numa salinha sendo desenhada por um monte de gente. Esculturas de
gente pelada em todos os grandes museus do mundo, pirocas e tals. E daí?
- Ela não estava simulando sexo. Não estava fazendo nada
violento. Ou você acha depilação violenta? Se você acha depilação um troço
violento (está no seu direito), então vamos discutir a violência contra a
mulher.
- "Mas tinha
que estar depilando?"
É. Já vi performances esteticamente mais interessantes. Mas
ela não matou animais, não infringiu liberdades alheias e a gente está aqui
discutindo a performance dela. A arte cumpriu seu papel de provocar
questionamentos. Só por isso, achei digno.
- "Mas e as
crianças? Como vou explicar pro meu filho?"
Explica 50 pessoas mortas numa boate gay. Explica criança
morando na rua. Isso aí é muito mais simples: "é performance artística,
filho. Quando você virar estudante de produção cultural, você vai
entender".
O que nos
leva da performance no pátio do MAC ao sinal ofensivo de Fernanda Young no
ensaio para a Playboy.
Pense bem.
Vossa Excelência realmente se ofendeu com tal sinal? Leia o que vou escrever e
depois pense bem.
Pra
começar, se Vossa Excelência expedir mandados de prisão ou sentenças condenatórias
para cada cidadão brasileiro que levantar o pai-de-todos para alguém (ou algo)
que lhe desagrada (ou solta um palavrão idem pela mesma razão) em seu duríssimo
cotidiano – sem ser, claro, na honrada sala de uma corte de justiça como a sua
– desconfio que 95% da população brasileira (especialmente os três Ps – preto,
pobre e as moças-da-difícil-vida-fácil) acabarão enchendo prisões de tamanho
equivalente (de novo, no chutômetro...) a 100.000 Maracanãs... (Claro que os 1%
da população que possuem mais de 50% da renda nacional e, pelo visto, uma certa
imunidade perante a justiça que Vossa Excelência representa... bem, como diria
o paladino Sergio Moro, isso não vem o caso...)
Isso
porque quando alguém levanta o pai-de-todos para alguém (ou algo), ou o manda
para as cinco-letras-que-cheiram-mal (ou, como um ilustre jornalista fez com um certo líder religioso, manda procurar um certo pássaro...) não é por
boniteza, mas por precisão de desabafar fortes sentimentos de desagrado e raiva
que não podem ser refreados, sob pena de se sentir mal por engolir sapos. No
caso do pai-de-todos de Fernanda Young – além da velha mania da moça de fazer
antes de pensar (variação do velho falar-antes-de-pensar...) – pode ser um
desabafo contra a hipocrisia. Mas isso pode ser discutível. O que não se pode é
rebaixar a moral de alguém por desabafos feitos por palavras e gestos
ofensivos. Ou será que Vossa Excelência, em nenhum momento fora do tribunal (em
casa, por exemplo) nunca mandou alguém para a chamada ponte que partiu em algum
momento de raiva?
Aliás, até mesmo em
momentos de alegria...
(© Falseknees.com -
2017)
Quanto à
relatividade... bem, não quero ser chato, Excelência, mas a relatividade (de
leis e valores morais) é inerente à civilização humana. Até mesmo na ciência –
Albert Einstein que o diga...
Vejamos as
leis. Os princípios do Corpus Juris
Civilis podem não mudar, mas a lei, por tabela, é consuetudinária – muda de
acordo com os costumes, as mudanças de pensamento e de aspirações da sociedade.
Leis do século XV, por exemplo, não se aplicam no século XXI. Outro exemplo:
durante quatro séculos, foi perfeitamente legal, de acordo com a lei, que seres
humanos tivessem como propriedade... outros seres humanos. Sim, Excelência,
estou falando da escravidão. No fundo, a sociedade nunca aceitou (CQD os
quilombos, como de Palmares e seu líder Zumbi...) Até que um dia, a sociedade
não quis mais a escravidão, e veio a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. (Lei esta
que certas parcelas boçais da elite brasileira sonham em revoga-la... mas como
diria seu colega Sergio Moro... isso não vem ao caso...)
Da mesma
forma, isso ocorre com os valores morais. Certo, há valores morais que não
mudam, como o respeito ao outro, por exemplo. Mas fora estes valores morais que
são imutáveis, os outros também são relativos e também mudam de acordo com os
costumes, as mudanças de pensamento e de aspirações da sociedade..
E
já que supunhetamos no assunto (© Aldir Blanc...) Fernanda Young, vejamos
alguns valores morais referentes às mulheres. Houve tempo em que não se
deixavam as mulheres frequentarem escolas (por muito favor, deveriam saber só
ler e escrever para anotar receitas culinárias, e olhe lá...); houve tempo em
que mulheres não podiam cursar universidades (e hoje, Vossa Excelência tem
colegas mulheres presidindo tribunais – Carmen Lúcia, ministra do STF, que o
diga...); e houve um tempo em que mulheres não podiam votar e ser votadas para
cargos políticos – talvez por influência de babaquices extraídas da mitologia grega:
Segundo Marco
Terêncio Varrão, citado por Agostinho
de Hipona, as mulheres da Ática tinham o direito ao voto na época do rei Cécrope I. Quando este rei fundou uma
cidade, nela brotaram uma oliveira e uma fonte de água. O rei perguntou
ao oráculo de Delfos o que isso queria dizer, e resposta é
que a oliveira significava Minerva e a fonte de água Netuno, e que os cidadãos deveriam
escolher entre os dois qual seria o nome da cidade. Todos os cidadãos foram
convocados a votar, homens e mulheres; os homens votaram em Netuno, as mulheres
em Minerva, e Minerva (em grego, Atena) venceu por um voto. Netuno ficou
irritado, e atacou a cidade com as ondas. Para apaziguar o deus (que Agostinho
chama de demônio), as mulheres de Atenas aceitaram três castigos: que elas
perderiam o direito ao voto, que nenhum filho teria o nome da mãe e que ninguém
as chamaria de atenienses.
(Machista,
esse Netuno... Vossa Excelência não acha?)
E, mesmo
assim, pouco a pouco, elas conquistaram esse direito – começando pela Nova
Zelândia, em 1893. Depois, vieram a Austrália (1902), Finlândia (1906),
Grã-Bretanha (1918), Canadá (voto em 1918, direito de se candidatarem a partir
de 1920), Alemanha (1919), Estados Unidos (1920), Equador (1929), Brasil (1933), França
e Itália (1945), Argentina (1951), Suíça (1971)...
Tudo isso
demorou por uma razão: a visão que uma sociedade tinha (e ainda hoje tem, em
países teocráticos ou quase) de que lugar de mulher é em casa, cuidando do
marido e dos filhos.
Pior:
ainda há cretinos que não só acham isso, como também acham que tem de ser
assim, porque "Homem não foi feito para
atividades de casa", como disse certa vez, em entrevista ao HuffPost, o
deputado Hidekazu Takayama, coordenador da bancada evangelicuzinha no Congresso
Nacional – aliás, cretiníssimo personagem já conhecido desta séria série.
Tão
cretino, aliás, que levou uma merecida bronca... de um homem.
DGA - Ô Hidekazu
Takayama, vai lavar uma louça!
(Canal Maestro Bogs
- YouTube)
Outro
exemplo, ainda em termos de valores morais em torno da mulher.
Até pouco
tempo, era considerado um valor moral masculino o direito de matar a sua
esposa, namorada ou companheira, caso ele desconfiasse que estava sendo traído.
Ora, isso é assassinato – artigo 121 do Código Penal. Mas há um parágrafo que
sempre abriu uma brecha neste crime grave:
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de
relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em
seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto
a um terço.
E, muitas
vezes, nobres colegas seus até absolviam o assassino.
Até que aconteceu o caso Ângela Diniz. Vossa Excelência deve se lembrar dele. Em 30 de
dezembro de 1976, Ângela foi assassinada por seu namorado Raul Fernandes do
Amaral Street, o Doca. Motivo: ciúmes. Em seu primeiro julgamento, Doca declarou
que a amava, mas ficou amargurado e indignado com uma proposta de
"dividi-la com outros homens e mulheres" e a matou por ciúmes. A
desculpa colou, e o júri o condenou a dois anos
com sursis (suspensão condicional da
pena) – ou seja, ele sairia livre. Sairia, não fosse a indignação de outras
mulheres (principalmente de movimentos feministas), que adotaram o slogan:
"Quem ama, não mata". (E, claro, lembraram que o "honrado"
Doca Street vivia às custas de Ângela Diniz.) Somado ao recurso do promotor,
Doca foi julgado de novo em 1981, e condenado a 15 anos de prisão.
A partir daí – e da Lei
nº 13.104, de 2015, que caracterizou o feminicídio
– matar mulher deixou de ser in.
Certo, mulheres continuam sendo assassinadas no país, mas (com raríssimas
exceções) juízes como Vossa Excelência nunca mais absolveram maridos, namorados
e companheiros assassinos.
Note Vossa
Excelência que todas estas ideias que hoje são merecidamente consideradas de
jerico – mulher ser obrigada a ficar em casa cuidando só das tarefas domésticas,
mulher ser morta pelo marido-namorado-companheiro,
mulher sem direitos civis etc. – originam-se de um conceito muito chato
simbolizado em uma palavra: misoginia.
Vejamos o
que diz o pai-dos-burros:
Misoginia (do grego μισέω, transl. miseó,
"ódio"; e γυνὴ, gyné, "mulher")
substantivo feminino
1. ódio ou aversão às mulheres; ódio, desprezo ou
preconceito contra mulheres ou meninas.
2. aversão ao contato sexual com as mulheres.
A misoginia pode se
manifestar de várias maneiras, incluindo a exclusão social, a discriminação sexual, hostilidade, androcentrismo, o patriarcado, ideias de privilégio masculino, a depreciação das mulheres, violência contra as mulheres e objetificação sexual
Androcentrismo?
Se Vossa Excelência me perdoar, WTF?
Outro verbete na Wikipedia nos explica o que é isso: "Androcentrismo é
um termo cunhado pelo sociólogo americano Lester F. Ward em
1903. Está intimamente ligado à noção de patriarcado. Entretanto, não se
refere apenas ao privilégio dos homens, mas também à forma com a qual as
experiências masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres
humanos e tidas como uma norma universal, tanto para homens quanto para
mulheres, sem dar o reconhecimento completo e igualitário à sabedoria e
experiência feminina."
O que nos
leva de volta ao caso Hugo Leonardo de Oliveira
Correa. Quando o "valente" querelado usou um perfil fake para chamar Fernanda Young de
"vadia lésbica", ele achou que podia exercer o "direito"
(assim mesmo, sr. revisor, entre aspas de novo, obrigado) de ser misógino. Só
esqueceu de pensar nas consequências – especialmente perante a lei que Vossa
Excelência defende.
Sim, é direito de Vossa Excelência promulgar a
sentença que achar justa ao caso, mesmo achando que esta sentença foi muito
baixa para um covarde.
E sim, é
direito de Vossa Excelência se identificar (nem que seja um pouquinho) com os
réus ou querelados de cada caso, dependendo da questão – muito embora seja
difícil encontrar juízes que se identifiquem com réus pobres que furtam alimentos
em supermercados para comer: antes nobres colegas seus absolviam tais réus ou
lhes aplicava penas bem brandas (tão brandas como as que o tal Hugo Leonardo de Oliveira Correa mereceu de Vossa Excelência); hoje,
são penas bem pesadas, "pra essa gente aprender" (SIC).
O problema
é: por que cargas d'água Vossa Excelência se identificou com a misoginia e com
as ofensas morais proferidas por tal querelante? E por que acoplar em sentença tão
branda uma "lição de moral" do século retrasado, baseada em valores morais
tão arcaicos como um pelourinho dos tempos da escravidão, que nem o mais
conservador cidadão deste século acataria?
Por que se
identificar com o ódio e nojo de um homem para com mulheres, especialmente as
que se empoderam? Será que ambos foram gerados em úteros artificiais, sem
participação feminina? (Aliás, a ofensa do querelado doeu muito em Fernanda
Young, mas doeu muito mais nas filhas dela. Sabia, Meritíssimo?)
Em suma:
seria bem mais honesto da parte de Vossa Excelência declarar-se impedido de
julgar tal caso por razões pessoais, transferindo-o para outro nobre colega. Ao
não fazê-lo e ao proferir suas considerações pessoais, Vossa Excelência
mostrou-se um magistrado bem preparado... para a justiça dos séculos XIII, XIV,
XV, XVI, XVII, XVIII... Quiçá, talvez, para um tribunal chamado Santa
Inquisição, que costumava mandar mulheres decididas para a fogueira, sob a
acusação de bruxaria.
Também
seria bem mais honesto da parte de Vossa Excelência (embora mais injusto)
absolver o querelado. Do jeito que está a sentença, Vossa Excelência não puniu
o tal Hugo Leonardo
pelas ofensas que ele fez: o senhor acabou se juntando às ofensas morais
proferidas por ele, por misoginia e moralismo exacerbado.
Sem mais,
para o momento...
*******************
E agora, a nossa indicação de filme para esta séria série: Ronda noturna (Ronda nocturna - Argentina, 2005), de Eduardo Cozarinsky (13º Mix Brasil, 2005).
O filme
acompanha a jornada de Victor (Gonzalo Heredia), michê e traficante, pela noite
de Buenos Aires, vagando pelas ruas da cidade e encontrando outros personagens
da noite (michês, travestis, um ex-michê), vai a saunas, interage com moradores
de rua, miseráveis, notívagos, etc, até o amanhecer, quando toma o rumo de
casa, quase como se estivesse em um documentário.
A medida
que a noite vai passando, parece que ele vai ficando mais solitário, e o filme
mais melancólico, principalmente quando Victor relembra fatos de seu passado.
Deem uma olhadinha no trailer.
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