09 fevereiro, 2012

DA SÉRIA SÉRIE "FILMES QUE JAIR BESTEIRARO ET CATERVA A-DO-RA-RI-AM..." (XXIII)

Eu bem que queria acabar com esta séria série. Infelizmente, os "fiscais de fiofó" (aka Frente Parlamentar Evangélica) não deixam: sempre nos surpreendem com mais uma demostração de imbecilidade.
Saiu hoje, 9 de fevereiro, n'O Globo:

Ministério veta vídeo de homens gays na campanha do Carnaval

O vídeo foi divulgado apenas durante algumas horas no site do Programa de Aids

BRASÍLIA - O Ministério da Saúde determinou ao Programa de Aids, da própria pasta, que retirasse da internet o vídeo institucional com filme com cenas de uma relação homossexual entre dois homens, que seria exibida para a campanha do Carnaval. Nas imagens, dois rapazes são apresentados numa boate, trocam carícias e são alertados por uma fada a usarem preservativo.

O filme, segundo material de divulgação do Programa de Aids do Ministério da Saúde, deveria ser exibido em TV e na internet. Estava disponível no site do programa desde sexta-feira, mas foi retirado do ar. O ministério informou na quarta-feira que o vídeo não deveria ter sido divulgado na internet e que será exibido apenas em espaços fechados frequentados por homossexuais.
[O grifo é meu, e esta pausa também, para transcrever uma pergunta feita por alguém no Facebook a respeito deste último trecho: "E o video do casal hetero? Só vai passar em lugares fechados frequentados por heterosexuais?"] 
O vídeo oficial, com logotipo do Ministério da Saúde, está sendo distribuído nas redes sociais.
Entidades e movimentos questionam a não exibição do filme na TV aberta.
Trecho do release do programa de Aids sobre a exibição deste filme, de outros, em TV:
"Os filmes a serem transmitidos pela TV e internet apresentam situações em que os públicos-alvo da campanha – homens gays jovens e um casal heterossexual – encontram-se prestes a ter relações sexuais sem camisinha. Em ambos os filmes, surgem personagens fantasiosos – uma fadinha, no caso do filme do casal gay, e um siri, no do casal heterossexual – com uma camisinha."

Ainda estão esperando uma explicação oficial do Ministério (da Falta) da Saúde a respeito desta censura/discriminação. Até lá, pensaremos o óbvio ululante: os "fiscais de fiofó" assim o exigiram
Assim como, no mês passado, os mesmos "fiscais de fiofó" conseguiram algo que, na visão de um estado LAICO, é um absurdo:

LEI Nº 12.590, DE 9 DE JANEIRO DE 2012.


Altera a Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991 – Lei Rouanet – para reconhecer a música gospel e os eventos a ela relacionados como manifestação cultural.


A PRESIDENTA DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:


Art. 1o A Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991, que restabelece princípios da Lei no 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC) e dá outras providências, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 31-A:


“Art. 31-A. Para os efeitos desta Lei, ficam reconhecidos como manifestação cultural a música gospel e os eventos a ela relacionados, exceto aqueles promovidos por igrejas.”


Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.


Brasília, 9 de janeiro de 2012; 191o da Independência e 124o da República.


DILMA ROUSSEFF
Vitor Paulo Ortiz Bittencourt


E eu me surpreendo pelo fato de que, até agora, ninguém entrou com uma ação de inconstitucionalidade sobre esta lei.
Por quê?


De acordo com a justificativa do autor deste projeto, o ex-deputado Bispo Rodovalho (PP-DF),

(...) o autor destacou que a música gospel é oriunda da tradição norte-americana, mas tem se disseminado no Brasil, em eventos de grande porte com grande participação de jovens. O estilo passa a ser considerado um gênero musical oficial, podendo receber o benefício de isenção fiscal da Lei Rouanet. (Os grifos são meus.)

Leram, não é? Música oriunda de "tradição norte-americana".
Não é querer ser nacionalista demais, mas a Constituição Federal é bem clara na seção referente à cultura:

TÍTULO VIII
Da Ordem Social
(...)
CAPÍTULO III
DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO
(...)
Seção II
DA CULTURA
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
(...)
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)
I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

Como é que pode-se considerar como cultura brasileira um tipo de música "oriunda da tradição norte-americana"?
Mais do que isso: a partir da aprovação desta lei, a música gospel passa a ter direito a isenção fiscal da Lei Rouanet - ou seja, passa a ter direito ao meu, ao seu, ao nosso dinheiro suado de impostos. Nenhum problema para o contribuinte evangélico ou católico. Mas, e os contribuintes de religiões afro-brasileiras, kardecistas, budistas, muçulmanos e mesmo de outras religiões protestantes? Também terão de financiar, com seus impostos, a música gospel, que representa apenas UMA confissão religiosa, a dos evangélicos?
É... cada vez mais acho que Jair Besteiraro é injusto com a presidente Dilma Rousseff e seu governo.Toda vez que os "fiscais do fiofó" berram contra alguma coisa (especialmente sobre os direitos do povo LGBT) ou exigindo alguma coisa (esta lei Rouanet para a música gospel), ela e seu governo (o termo é meio forte, mas vá lá) ABREM AS PERNAS vergonhosamente.
Assim, a República Teocrática Evangélica Brasileira vai chegar mais rápido do que a gente pensa.
************************************
Enquanto esta República Teocrática Evangélica Brasileira não chega (e já que falamos de religião e estado), vamos aproveitar e indicar mais um filme para a nossa séria série: Hineini: Coming Out in a Jewish High School (EUA, 2005), documentário de Irena Fayngold. (Em hebraico, "hineini" quer dizer "aqui estou")
Mas quem "sobreviveu a uma escola judaica" (como diz o título original)? Foi uma adolescente chamada Shulamit Izen. Filha de uma família judia não muito religiosa, Shulamit decide estudar numa escola judaica tradicional (isto é, religiosa) de Boston - ou seja, abraça fervorosamente a fé judaica. Ao mesmo tempo, assume sua homossexualidade para a família, amigos e professores, e decide criar um grupo de apoio dentro da escola para jovens alunos que queiram se assumir gays. O documentário acompanha a sua entrada nesta escola religiosa e sua batalha para criar um ambiente tolerante à diversidade sexual dentro dela. Afinal, para ela, religião não conflita com identidade sexual - no que está mais do que certa.

Difícil ver Hineini exibido nos cinemas. Mas bem que algum canal por assinatura - destes que exibem documentários - poderia exibi-lo, não é? (De preferência, poderia exibi-lo gratuitamente para os "fiscais de fiofó", para ver se eles se mancam...)

Enquanto não vem, que tal olharmos um trecho do filme?

03 fevereiro, 2012

DO ARQUIVO DA REVISTA SOMBRAS ELÉTRICAS (II) - CIRANDA PATCHWORK DA BAILARINA

CIRANDA PATCHWORK DA BAILARINA
(Da séria série As belas da tarde e da sessão da tarde)
Antonio Paiva Filho
(SOMBRAS ELÉTRICAS nº 7 - seção Ver com Olhos Livres - Junho de 2006)

Procurando bem / Todo mundo tem pereba / Marca de bexiga ou vacina / E tem piriri, tem lombriga, / tem ameba / Só a bailarina que não tem / E não tem coceira / Berruga nem frieira / Nem falta de maneira / Ela não tem // Futucando bem / Todo mundo tem piolho / Ou tem cheiro de creolina / Todo mundo tem um irmão meio zarolho / Só a bailarina que não tem / Nem unha encardida / Nem dente com comida / Nem casca de ferida / Ela não tem // Não livra ninguém / Todo mundo tem remela / Quando acorda às seis da matina / Teve escarlatina / Ou tem febre amarela / Só a bailarina que não tem / Medo de subir, gente / Medo de cair, gente / Medo de vertigem / Quem não tem // Confessando bem / Todo mundo faz pecado / Logo assim que a missa termina / Todo mundo tem um primeiro namorado / Só a bailarina que não tem / Sujo atrás da orelha / Bigode de groselha / Calcinha um pouco velha / Ela não tem // O padre também / Pode até ficar vermelho / Se o vento levanta a batina / Reparando bem, todo mundo tem pentelho / Só a bailarina que não tem / Sala sem mobília / Goteira na vasilha / Problema na família / Quem não tem // Procurando bem / Todo mundo tem...
(Ciranda da bailarina, Chico Buarque e Edu Lobo - Do balé O Grande Circo Místico - 1982)




Filipeta do espetáculo Frio - 36 e meio ºC, da Cia Bastarda de Teatro Plástico e Humorismo Batráquio. Em destaque, nossa bailarina patchwork, Laís Marques - bela atriz que o cinema precisa conhecer melhor.

(Está bem, pode até ser que ela não goste desta canção do Chico Buarque.
Pior: é bem possível que ela não goste de NADA de Chico Buarque.
Paciência. É a única que me ocorre como epígrafe.)

"Fui morena e magrinha como qualquer polinésia", cantou certa vez Cecília Meireles. A moça também é magrinha e morena – mais pelo cabelo castanho-escuro (atualmente curto, como o de um menininho – ou menininha, dependendo do penteado) do que pelo tom da pele: a desta moça (dir-se-ia até, com algum exagero) é romanticamente pálida. Não chega a ter a altura regulamentar das jogadoras de vôlei ou de basquete, mas também não chega a ser baixinha: se eu me guiar por minha própria altura (1,70m), poderia chutar que ela tem uns cinco centímetros a menos (1,65m). O rosto poderia ser definido como um misto de menina e de diva do cinema mudo, tipo Theda Bara ou Clara Bow...
Esta é a moça com quem falei em meados de 2003, para convidá-la a atuar num curta-metragem que eu estava preparando num esquema independente. (Não me peça detalhes sobre esquema: além de independente, era frágil e caiu como um castelo de cartas. Até hoje a moça deve estar pensando que sou um baita furão...) Motivos eu tinha para tal, e muito.
Na verdade, a primeira vez que eu a vi foi por volta de 2001 ou 2002, num exercício de direção do Curso de Artes Cênicas da ECA-USP, em torno de As criadas, de Jean Genet, junto com a colega Aura Cunha.
[Nota 1 - Antes que me perguntem: o Curso de Artes Cênicas não tem nada a ver com a Escola de Arte Dramática (EAD) da USP, fundada em 1958, embora resulte dela. É que, em 1969, uma reforma dentro da USP vinculou a EAD à ECA e transformando-a num curso técnico, a nível médio, de formação de atores. Esta mesma reforma criou um curso de Artes Cênicas, a nível de graduação (em três habilitações: Direção, Interpretação e Teoria do Teatro) e, hoje, de pós-graduação. Foi com este curso, que ficaram, oficialmente, as pesquisas para o aperfeiçoamento das artes cênicas em geral, e do teatro, em particular. Digo "oficialmente" porque grupos surgidos na EAD (como o Grupo XIX de Teatro, dos belos espetáculos Hysteria, de 2002, e Hygiene, de 2005) não ligam a mínima e, extra-oficialmente, experimentam. Mas isso é assunto para outro artigo.]
(Parêntesis - antes que alguém me pergunte, um exercício de direção no Curso de Artes Cênicas da ECA-USP é o seguinte: os alunos da habilitação Direção Teatral pegam seus colegas da habilitação Interpretação Teatral e, juntos, realizam uma cena baseada em alguma peça ou criada coletivamente.)
Depois, em Frio 36 e meio ºC, dirição de Arthur Belloni, integrando a Cia. Bastarda de Teatro Plástico e Humorismo Batráquio.
(Novo parêntesis: em tempos idos – isto é, quando o grupo estreou este espetáculo em 2003 no Teatro Laboratório da ECA, ele se chamava apenas Cia. Plástica de Teatro. Depois, quando Frio 36 e meio ºC foi enfrentar as salas de espetáculo da Paulicéia Desvairada e depois, passou a se chamar Cia. Bastarda de Teatro Plástico. Em sua última encarnação conhecida – em abril de 2005, no Centro Cultural São Paulo – o grupo adotou o nome atual. Um amigo meu, bem gaiato, comentou que o grupo só se dará por satisfeito quando o seu nome for da extensão da Via Dutra...)
Em tese, Frio 36 e meio ºC é um espetáculo que trata da incomunicabilidade, das dificuldades de relacionamento e diálogo entre os bichos-homens. Mas a caracterização de seus quatro "não-personagens" também poderia ser considerada uma metáfora do próprio teatro, ou mesmo do entretenimento, do espetáculo-negócio. Se assim o quisermos.
Senão vejamos. A primeira "não-personagem", uma bailarina clássica, pode representar o teatro clássico ou a ópera ou a cultura acadêmica, "ultrapassada" e "corrompida"; A segunda "não-personagem", uma atriz de cacoetes gerald-thomas-brechtianos (Helena Cerello) pode ser o teatro experimental ou a arte de vanguarda – ou o que já foi de vanguarda e hoje está incorporado ao establishment, ou que engana ser experimental ou de vanguarda. (Terceiro parêntesis: não torça o nariz, porque isso também acontece.) O terceiro "não-personagem", um ator aparentemente quase mecânico, colegial (o próprio Arthur Belloni, sob o pseudônimo de Eduardo Araújo), pode simbolizar os formandos dos cursinhos de formação de atores fast-food da vida. E o quarto "não-personagem", um contra-regra (Djair Guilherme), aparentemente é um não-ser que se limita a colocar e tirar objetos de cena – principalmente uma maleta – com gestuais e falas neutros e mecânicos: "Entro no palco... sigo profissionalmente... coloco o objeto de cena... sigo profissionalmente..." Isso até quase o final, quando o misterioso diretor do estranho espetáculo manda que ele cante alguma coisa; menino obediente, o contra-regra canta Bilú tetéia. Não fosse a coação do chefe oculto, poderíamos compará-los aos anônimos cidadãos participantes dos "big brothers" da TV e similares.
Ah, quase que eu ia esquecendo: a "não-personagem" bailarina era Laís. E encantou este escriba, que a quis como atriz. (Rima involuntária, mas valeu...) E – já vou anunciando logo – ainda a quer, porque este escriba não desistiu do curta-metragem que quer fazer.
Aliás, senhores cineastas, a moça continua querendo fazer filmes, e está disponível. Portanto, prestem atenção no que vão ganhar se lhes derem papéis no cinema. De preferência, bons papéis, porque, por enquanto, ela está sendo muito subutilizada. Ou então, se minha palavra não bastar, vão a um teatro e a vejam atuar.
Explico.
Há uma ótima definição de ator, cunhada pelo cineasta gaúcho Carlos Gerbase: ator é alguém que recebe dentro de si um corpo estranho, sem rejeitá-lo. A este corpo estranho – ou dependendo de seu ego, id e superego, estranhíssimo – nós chamamos de personagem.
Há também um comentário de Jacques Audiberti [Nota 2 - Escritor francês (1899-1965), autor de romances como Monorail e Marie Dubois. A respeito deste último, uma curiosidade: quando fazia testes com atrizes para Atirem no pianista (1960), Truffaut selecionou uma jovem atriz novata, Claudine Huzé, para o papel de Léna; no entanto, sugeriu-lhe que adotasse um novo nome artístico – justamente, Marie Dubois, em homenagem a Jacques Audiberti. A moça aceitou, e se tornou Marie Dubois para a eternidade, atuando em outros filmes, como Jules e Jim (1963), de Truffaut.], citado por um grande amigo seu, François Truffaut. Pois além de fazer filmes, François Truffaut gostava muito de mais três coisas: de ler (era um leitor de livros voraz), de escrever (aliás, ele começou a ficar conhecido escrevendo, como crítico dos Cahiers du Cinéma e de Arts), e das mulheres – principalmente das suas atrizes. Num texto seu dedicado a Bernadette Lafont [Nota 3 - Atriz do primeiro filme de Truffaut, o curta Les mistons (Os guris – 1958), e do longametragem Uma jovem tão bela como eu (1972)], Truffaut cita com pertinência um comentário sobre ela de um amigo seu, Jacques Audiberti. Para ele, Bernadette representava como se sua vida estivesse em risco.
Talvez a afirmação de Audiberti, guardadas as devidas proporções, fosse como chover no molhado: todo ator representa como se fosse tão necessário para viver, tal como respirar, comer etc., etc.
O caso de Laís Marques é este mesmo. Laís recebe o "corpo estranho" como se recebesse um amante apaixonado dentro de si, fazendo com que ele chegue às alturas e se parta em multifacetadas cores e nuances – tal como pedaços de tecido de um trabalho de patchwork. Mais que isso: se não fizer isso, não vive.
Tá, talvez eu esteja exagerando, mas quem a viu no palco em Frio 36 e meio ºC viu vitalidade, segredo, valentia, maldade, entusiasmo, dor, amor, humor, ferocidade, intensidade. O palco gosta de Laís, e vice-versa.
Laís também gosta da câmera de cinema (ou de vídeo), e faz de tudo para que a segunda goste dela. O problema não é a câmera, mas as pessoas que a manipulam. Bem sabemos que há um bom tempo que não dão mais mescalina para as máquinas de filmar [Nota 4 - A sugestão é de Humberto Mauro (1897-1983), sob o impacto da leitura de As portas da percepção, de Aldous Huxley: "É preciso dar mescalina às nossas câmeras"], nem mesmo uma boa caninha de Salinas [Nota 5 - Cidade do norte de Minas Gerais, na região de Montes Claros, famosa por sua cachaça artesanal de excelente qualidade. Talvez por conta disso, tenha virado nome de importante personagem feminino (encarnado por Tamara Taxman), do filme Cabaret Mineiro, de Carlos Alberto Prates Correia (1980)], e os que mexem com elas parecem ter sangue de fanta-laranja-aguada. Talvez por isso, ainda não devem ter atentado para o fato de que, com um bom papel – não exatamente o de protagonista, mas um em que possa demonstrar sua versatilidade multifacetada – Laís fará, finalmente, com que a câmera se apaixone por ela, e não a largue mais. Ou, pelo menos – e se me perdoarem a ligeiramente erótica fixação –, um ménage à trois com o teatro.
Isso não acontece em Nossos parabéns ao Freitas, de Felipe Sant'Ângelo (2003). Este filme é uma piada, no bom e no mau sentido. O bom sentido: a piada contada de Nossos parabéns ao Freitas – fruto da temática besteirol-engajada da trupe IVO60 em Cia. de Teatro, que dialoga também com algumas características da comédia erótica dos anos 70 (pornochanchada, para os mais grossos) – é engraçadíssima. O mau sentido, referente a Laís: como a filha rebelde do reacionário Freitas, a moça entra muda e sai quase calada. Só não digo de que forma sai quase calada porque posso comprar outra briga com a Renovação Carismática Católica (a versão com água benta do pentecostalismo evangélico)...
Isto também não acontece no primeiro longa-metragem de Roberto Moreira, Contra todos – mais uma vez, a periferia examinada pelas lentes, no fundo, preconceituosas da classe mé(r)dia – onde, mais do que em Nossos parabéns ao Freitas, Laís entra ainda mais quase muda e sai ainda mais quase calada, como a amiga da filha revoltada do justiceiro (matador) do lugar.
Até agora, os melhores momentos de Laís estão em um curta e um vídeo.
O curta é Carregar uma criança, de Bruno Carneiro (2003). Seu papel é o de uma jovem que fica grávida, e graças ao seu trabalho, nos identificamos com o seu desespero – não pela gravidez em si, mas pela concepção em um momento de desgaste na relação com o namorado, que já não era mais aquela.
O vídeo é Chorume, de Hélio Villela Nunes (2006), produção do Gato do Parque e ECA-USP. Sobre o Gato do Parque, já falei sobre o seu chapéu cheio de surpresas e sua capacidade de ir com suas unhas afiadas ao íntimo das coisas. Algumas destas unhas são das mãos de Laís, na pele de uma das moças que vivem uma relação amorosa (a outra é a igualmente ótima Giovana Velasco) que entra em crise com a inesperada presença de um lixeiro (o muito bom Jerri Rodrigues), que, sem querer querendo, entra de gaiato num estranho navio de jovens "filhinhos-de-papai", uma rave à fantasia numa mansão. A crise final de um namoro desgastado, numa atmosfera de indiferença, por parte dos jovens "filhinhos-de-papai" que se divertem, pelo lixeiro seria apenas um dos detalhes da narrativa – se o ciúme da namorada que Laís interpreta, ainda que discreto, não fosse raivosamente expressivo. Quem tem ou já teve ciúme se identifica.
Ou seja, se o prezado cineasta quiser olhar estes exemplos que apontei, verá que é uma ótima idéia ter Laís Marques e seu talento patchwork de multifacetar-se em cores e nuances diversas em seu próximo filme. Se não acontecer algo extraordinário com a moça – algo como uma bolsa de estudos no exterior (o que é bom) ou entrar no elenco da próxima novela das oito (o que, em dinheiro, é bom) – eu pretendo fazer com que ela, ainda que por 20 minutos, e receba dentro de si um dos personagens que criei, divida-se em mil nuances e o faça entrar na vida de quem o ver em 24 quadros por segundo. Tal qual Beatriz – não a de Dante, mas a do Chico Buarque:

Olha / Será que ela é moça / Será que ela é triste / Será que é o contrário / Será que é pintura / O rosto da atriz / Se ela dança no sétimo céu / Se ela acredita que é outro país / E se ela só decora o seu papel / E se eu pudesse entrar na sua vida
Olha / Será que é de louça / Será que é de éter / Será que é loucura / Será que é cenário / A casa da atriz / Se ela mora num arranha-céu / E se as paredes são feitas de giz / E se ela chora num quarto de hotel / E se eu pudesse entrar na sua vida
Sim, me leva para sempre, Beatriz / Me ensina a não andar com os pés no chão / Para sempre é sempre por um triz / Ai, diz quantos desastres tem na minha mão / Diz se é perigoso a gente ser feliz
Olha / Será que é uma estrela / Será que é mentira / Será que é comédia / Será que é divina / A vida da atriz / Se ela um dia despencar do céu / E se os pagantes exigirem bis / E se um arcanjo passar o chapéu / E se eu pudesse entrar na sua vida

(Taí, pode ser que ela se identifique mais com esta canção do Chico. Como pode até ser que ela não goste dela.
Pior: é bem possível que ela não goste de NADA de Chico Buarque.
Paciência. É a única que me ocorre como fecho.)


FILMOGRAFIA DE LAÍS MARQUES:

[Revista e ampliada em fevereiro de 2012.]

NOSSOS PARABÉNS AO FREITAS
(CTR-ECA-USP - 2003 - 11 min – Colorido – 16mm)
Direção: Felipe Sant´Angelo. Produção: Giuliano Ronco. Fotografia: Marco Dutra. Roteiro: Felipe Marcondes Sant´Angelo. Edição: Carla Kinzo. Som Direto: Pedro Granato. Direção de Arte: Luiz Ricardo Florence.
Elenco: Alessandro Azevedo, Alexandre Frota, Alexandre Krug, Guilherme Cerqueira César, Laís Marques, Mariana Senne, Rhena de Faria.
O trágico aniversário de Freitas, pai de família reacionário e reprimido que se auto-intitula um "come-cu de putas".
FESTIVAIS
Festival Internacional de Curtas de São Paulo 2003
Mostra Nordestina de Curtas 2003
Festival Primeiro Plano 2004
Mostra de Taquatinga 2004
Mostra do Audiovisual Paulista 2004
Mostra do Filme Livre 2004
CineEsquemaNovo - Festival de Cinema de Porto Alegre 2004
FEST- Festival de Cinema e Vídeo Jovem de Espinho 2005
PRÊMIOS
Menção Honrosa ABD&C no Festival Brasileiro de Cinema Universitário - Rio de Janeiro 2004
Prêmio Cachaça Cinema Clube no Festival Brasileiro de Cinema Universitário - Rio de Janeiro 2004
Melhor Curta Metragem Nacional pelo Júri Popular no Mostra Mix Brasil 2003
Melhor Curta - Júri Popular no Panorama Latino Americano de Cinema Universitário 2004
"Destaque em Contribuição Artística" no Festival Brasileiro de Cinema Universitário 2004
"Destaque em Expressão Cultural" no Festival Brasileiro de Cinema Universitário 2004

CARREGAR UMA CRIANÇA
(Polo de Imagem/Vertigo Filmes - 2003 - 13 min – Colorido – 35mm)
Direção: Bruno Carneiro Assistência de Direção: Fábio Peraçoli Roteiro: Bruno Carneiro Fotografia e Câmera: Eduardo Ruiz Assistência de Câmera: Robson Guimarães Direção de Arte: Paola Gemente Som: Louis Robin Edição de Som: Luiz Adelmo Música: Frank Poole, Alzira Espíndola, Renato Teixeira Montagem: Bruno Carneiro Continuidade: Alethea Silvestre, Tiago Soban Produção Executiva: Bruno Carneiro Produção: Camila Groch Assistência de Produção: Flávio Lobo Figurino: Paola Gemente, Patrícia Peccin Maquiagem: Fátima de Oliveira
Elenco: Camila Mota, Maurício Marques, Marcos Cesana, Laís Marques, Marcelo Selingardi
A família de lavradores, o caminhoneiro e o casal de jovens. Cada um tem que levar seus filhos.
Contato:
Bruno Carneiro
São Paulo - SP
Fone: 11 9762-3545
brunocarneiro@hotmail.com

CONTRA TODOS
(Coração da Selva / O2 Filmes - 2004 - 95 min – Colorido – 35mm)
Direção, Roteiro: Roberto Moreira. Produção: Fernando Meirelles, Roberto Moreira, Geórgia Costa Araújo, Andréa Barata Ribeiro e Bel Berlinck. Música: Lívio Tragtenberg. Fotografia: Adrian Cooper. Desenho de Produção: Áurea Gil. Figurino: Marjorie Gueller e Joana Porto. Edição: Mirella Martinelli. Distribuição: Warner Bros.
Elenco - Leona Cavalli (Cláudia), Sílvia Lourenço (Soninha), Aílton Graça (Waldomiro), Giulio Lopes (Teodoro), Martha Meola (Terezinha), Dionísio Neto (Lindoval), Gustavo Machado (Marcão), Paula Pretta (Claudete), Ismael de Araujo (Júlio), Laís Marques (Regina), Waterloo Gregório (Luiz), Fernando Petelinkar (Vendedor de carro), Alessandro Azevedo (Tião), Neusa Velasco (Mãe de Terezinha), Sérgio Cavalcante (Irmão de Terezinha), Elder Fraga (Rapaz do bar), Sérgio Pardal (Carecas), Daniel Coelho, Nei Pelizzon.
Em um bairro da periferia de São Paulo vivem Teodoro (Giulio Lopes), sua filha adolescente Soninha (Sílvia Lourenço) e sua segunda mulher, Cláudia (Leona Cavalli). O dia-a-dia dessa família classe média baixa está assentado sobre mentiras. Por trás da fachada de homem religioso, Teodoro ganha a vida como matador, bate na revoltada Soninha e tem uma relação extra-conjugal com Terezinha (Martha Meola), sua companheira de culto. Vaidosa e insatisfeita no casamento, Cláudia vive um caso com Júlio (Ismael de Araújo), filho do açougueiro da vizinhança. Em torno do grupo orbita Waldomiro (Aílton Graça), amigo e sócio de Teodoro e objeto do desejo de Soninha. Após Júlio ser assassinado, Cláudia culpa o marido, destrói a casa e foge. Num hotel do Centro ela conhece o porteiro Lindoval (Dionísio Neto), com quem inicia um namoro. Exausto, Teodoro decide deixar sua vida em São Paulo, casar-se com Terezinha e mandar Soninha para a casa da avó, mas nada sai como planejado. Quando Lindoval é espancado até quase a morte, Cláudia suspeita do ex-marido. Na mesma noite, Terezinha recebe em casa uma fita de vídeo em que Teodoro transa com Cláudia.

CHORUME
(Gato do Parque/CTR-ECA-USP – 2006 – cor - 20 min)
Direção: Hélio Villela Nunes. Roteiro: Hélio Villela e Guile Martins. Direção de Produção: Guilherme César, Vinicius Toro. Fotografia: Julia Zakia. Câmera: Ricardo Saito. Som: Guile Martins. Edição: Pedro Granato. Direção de Arte: Jessica Sato.
Elenco: Giovana Velasco, Laís Marques, Jerri Rodrigues.
Um lixeiro de verdade dentro de uma festa à fantasia parece apenas mais um fantasiado entre tantos. Mas o motivo que o levou ali e que o expulsa dali está no fim de um longo namoro entre duas meninas.
Contato: (11) 38363103, heliovillela@yahoo.com

O SIGNO DA CIDADE
(Coração da Selva / Pulsar Arte e Cinema / Globo Filmes - 2008 - 35mm)
Direção: Carlos Alberto Riccelli
Roteiro - Bruna Lombardi; Fotografia - Marcelo Trotta; Produção - Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli; Edição - Márcio Hashimoto Soares; Direção de arte - Mara Abreu; Figurino - Paula Iglecio; Música - Sérgio Bártolo E Zé Godoy.
Elenco - Bruna Lombardi (Teca), Malvino Salvador (Gil), Juca de Oliveira (Aníbal), Graziela Moretto (Mônica), Luís Miranda (Sombra), Denise Fraga (Lydia), Eva Wilma (Adélia), Fernando Alves Pinto (Devanir), Sidney Santiago (Josi), Kim Riccelli (Gabriel), Laís Marques (Júlia), Bethito Tavares (Biô), Thiago Pinheiro (Luís), Rogério Brito (Oriovaldo), Cristina Mutarelli (Hilda).
Enquanto as estrelas e os planetas se movem pelo céu de São Paulo, atirando sua mágica ao acaso, homens e mulheres perguntam o que será de seus sonhos e desejos. Gil é casado e só. Lydia flerta com o perigo. Josialdo nasceu para ser mulher. Mônica só quer se dar bem na vida. Júlia (Laís Marques), namorada de um suicida, oscila entre o desejo de morte e a vida. Em seu programa de rádio noturno onde ela responde ouvintes anônimos, a astróloga Teca se vê entre seus próprios problemas e os desejos dos outros. Pouco a pouco, todos juntos em destino tece sua própria teia. Na luta para romper o isolamento e achar o caminho para a redenção, essas pessoas vão descobrir o poder transformador da solidariedade.

CODA (2008 – 9’) - curta-metragem
Direção, roteiro e fotografia - Marcos Camargo; Produção e direção de produção - Marcelo Monteiro; Direção de Arte - Renata Rugai; Animação - Pedro Iuá; Trilha original - Luiz Macedo; Som - Edilson Martins; Produção Executiva - Matias Mariani; Montagem - Analucia Godoi
Três bailarinas estão chegando em suas casas. Sozinhas com seus próprios delírios... ou seriam suas verdades fantasiadas?

FILMEFOBIA
(Paleo TV - 2009 - 35mm)
Direção - Kiko Goifman; Roteiro - Kiko Goifman e Hilton Lacerda; Produção - Jurandir Muller e Roberto Tibiriçá; Fotografia - Aloysio Raulino; Edição - Vânia Debs; Música - Livio Trachtenberg.
Elenco - Thiago Amaral, Vitor Ângelo, Marcela Bannitz, Jean-Claude Bernardet, Cris Bierrenbach, Ariel Bogochvol, Luiz Cabral, Ravel Cabral, Tomás Decina, Debora Duboc, Kiko Goifman, Hilton Lacerda, José Mojica Marins, Laís Marques, Caio Martins, Rita Martins, Ricardo Napoleão, Justine Otondo, Carol Pinzan e Livio Trachtenberg.
Jean-Claude (Jean-Claude Bernardet) é o diretor de um falso documentário que nunca tem fim. FilmeFobia é um falso making of deste documentário fictício sobre o medo na sociedade contemporânea.
A principal ideia do diretor do documentário - Jean-Claude – é que a única imagem verdadeiramente autêntica, real e convincente é a de um ser humano em contato com a sua própria fobia. O elenco do falso documentário explora os limites da psique, contrapondo a fobia das pessoas com situações fortes, emocionalmente violentas.
Aracnofobia, fobia de avião, talassofobia (medo do mar), fobia de cobras, fobia de sangue, fobia de agulhas, fobia de pombos, fobia de penetração [a fobia da personagem de Laís Marques], fobia de botões.
O argumento principal do filme é também a razão pela qual o filme nunca termina: terá o diretor do documentário – 71 anos – começado a ficar cego? A situação de HIV positivo do diretor piorou? Essa situação terá perturbado a mente do diretor quando ele teve que lidar com a fobia de sangue?

QUANTO DURA O AMOR
(Coração da Selva - 2009 – 35mm)
Direção - Roberto Moreira; Produção - Geórgia Costa Araújo; Roteiro - Anna Muylaert e Roberto Moreira; Argumento - Silvia Lourenço e Geórgia Costa Araújo; Direção de Fotografia - Marcelo Trotta; Direção de Arte - Marcos Pedroso; Montagem - Mirella Martinelli; Música - Livio Tragtenberg; Figurino - Paula Iglecio; Preparação de Elenco - Sergio Penna; Produção de Elenco - Paula Pretta; Produção Executiva - Andrezza de Faria, Geórgia Costa Araújo e Rachel Braga; Produtor Delegado - Luciano Patrick.
Elenco - Silvia Lourenço (Marina), Danni Carlos (Justine), Paulo Vilhena (Nuno), Maria Clara Spinelli (Suzana), Gustavo Machado (Gil), Fábio Herford (Jay), Leilah Moreno (Michelle), Paula Pretta (Wladia), Sergio Guizé (Caio), Laís Marques.
Marina, jovem aspirante a atriz, chega a São Paulo cheia de sonhos de independência e realização. Vai dividir um apartamento em um condomínio no coração da cidade com Suzana, advogada solitária e com um quê de mistério. A poucos andares, Jay, escritor de um livro só, procura um sentido para a vida. Na noite, Marina se encanta pela cantora Justine. No Fórum, Suzana e o colega Gil começam um namoro. Na rua, Jay elege para musa a prostituta Michelle. No ritmo impiedoso da cidade, os três vão viver a euforia da paixão e a sua outra face - para descobrir quanto dura o amor.

FAMÍLIA VENDE TUDO
(A.F. Cinema e Vídeo - 2011 – longa)
Direção - Alain Fresnot; Roteiro: Alain Fresnot e Marcus Aurelius Pimenta;
Produção - Suzana Villas Boas; Fotografia - José Roberto Eliezer.
Elenco - Marisol Ribeiro, Caco Ciocler, Luana Piovani, Lima Duarte, Vera Holtz, Juliana Galdino, Ailton Graça, Beatriz Segall, Marisa Orth, Laís Marques.
Após a apreensão de suas muambas vindas do Paraguai, uma família de trambiqueiros em dificuldades financeiras tem uma brilhante idéia: fazer com que a filha Lindinha (Marissol Ribeiro) engravide do famoso cantor Ivan Cláudio (Caco Ciocler) para herdar uma bolada e tirar todos do sufoco. Eles planejam certinho o dia em que a garota deve sair com o astro e passam a acompanhar sua agenda de shows. Eles só não contavam com um detalhe: a ciumenta Jennifer (Luana Piovani), mulher de Ivan, que não vai deixar esta história em passar em branco.

IMPULSOS (2010) - curta-metragem - direção Mariana Sierra (2010)

ARRITMIA (2011) - curta-metragem - direção Cláudia Pucci.


© 2006 / 2012 – Antonio Paiva Filho.
© 2006 – SOMBRAS ELÉTRICAS

02 fevereiro, 2012

DEDICADO AOS BUR(R)OCRATAS DO MINC E DO CGU QUE ELABORARAM OS EDITAIS DA SAv 2012


Exma. sra. Ministra da (Falta de) Cultura Ana de Hollanda;
Exma. sra. Secretária (da Falta) do Audiovisual Ana Paula Santana;
Exmo. sr. presidente da Funarte (e eminência parda - e vingativa - do MinC), Antonio Grassi;
Exmo. sr. Controlador Geral da União Jorge Hage:

ENTENDERAM (especialmente a parte dos "bur(r)ocratas que elaboram editais") OU QUEREM QUE EU SOLETRE BEM DEVAGAR?

01 fevereiro, 2012

DO ARQUIVO DA REVISTA SOMBRAS ELÉTRICAS (I) - CRÔNICA DO CINEMA NOELIANO (ou: O Samba, A Prontidão e Outras Bossas a 24 Quadros Por Segundo)

A partir de hoje, o blog da revista SOMBRAS ELÉTRICAS inicia a republicação de artigos publicados originalmente na revista (que está fora do ar por motivos alheios à nossa vontade).
Começamos com um artigo sobre as relações entre a música de Noel Rosa e o cinema, publicado em SOMBRAS ELÉTRICAS nº 2 (Jan./Fev. 2004).

CRÔNICA DO CINEMA NOELIANO (ou: O Samba, A Prontidão e Outras Bossas a 24 Quadros Por Segundo)
Antonio Paiva Filho
Como vai, caro leitor? Tudo bem?
Imagine você que ontem eu fui assistir um curta-metragem muito interessante lá no... onde foi que eu vi este filme mesmo?... bom, deixa pra lá. O que importa é a história do curta. Quer que eu conte? Então vamos lá:
É noite. Há uma festa na casa de alguém. Todos estão se divertindo, conversando e dançando. Uma jovem, Maria, está na festa, em companhia de seu namorado.
Eis que João chega à festa. A dona da casa pega João pelo braço e o apresenta a alguns convidados.
É quando, finalmente, a dona da casa apresenta João à Maria... sem saber que os dois já se conheciam antes; os dois se olham fixamente.
A partir daí, um flash-back, em cenas curtas, da relação amorosa que eles tiveram: o amor, as brigas por ciúmes, o rompimento.
Volta para a festa; João e Maria continuam olhando-se mutuamente, pois os dois ainda sentem saudades um do outro.
Apesar disso, quando João começa a esboçar um sorriso e um cumprimento amigável, Maria -- lembrando-se que seu novo namorado, bem ciumento, está ao seu lado -- estende a mão e o cumprimenta formalmente: "Prazer em conhecê-lo".
A frieza e a formalidade de Maria são um choque para João; no entanto, ele mantém o sangue frio e responde: "O prazer é todo meu"; depois se afasta.
Maria e seu namorado começam a discutir em voz baixa, por causa de João. Em meio à discussão, Maria vê João sair da festa à francesa, discretamente.
Gostou? Ótimo, principalmente se você nunca foi grande apreciador do curta-metragem. O nome do curta? Prazer em Conhecê-lo.
Engraçado... este nome não lhe é estranho, não é, caro leitor?... Mas agora você quer saber: onde este curta está sendo exibido?
Puxa, bem que estou tentando me lembrar... onde foi mesmo? Ah, lembrei: não foi em cinema nenhum. Eu vi este filme em casa. Ou melhor, eu o ouvi em casa, na voz de Mário Reis:
Quantas vezes nós sorrimos sem vontade / Com o ódio a transbordar no coração / Por um simples dever da sociedade / No momento de uma apresentação // Se eu soubesse que em tal festa te encontrava / Não iria desmanchar o teu prazer / Porque, se lá não fosse eu não lembrava / Um passado que tanto nos fez sofrer // Lá no canto vi o meu rival antigo / Ex-amigo / Que aguardava o escândalo fatal / Fiquei branco, amarelo, furta-cor / De terror / Sem achar uma idéia genial / Ainda lembro que ficamos de repente / Frente a frente / Naquele instante, mais frios do que gelo / Mas, sorrindo, apertaste a minha mão / Dizendo então:/"Tenho muito prazer em conhecê-lo" // Mas eu notei que alguém impaciente / descontente / Ia mais tarde te repreender / Tão ciumento que até nem quis saber / Que mais prazer / Eu teria em não te conhecer.
Pois é, caro leitor, o filme nunca existiu, a não ser na cabeça de um mero escriba ouvinte de músicas de Noel Rosa. Mas se você embarcou direitinho na minha trip cinematográfico-musical, deve ter observado como foi fácil imaginar imagens, planos, diálogos etc. a partir da letra, e como deve ter sido fácil imaginar o ritmo deste filme imaginário a partir da melodia. Se não embarcou, não faz mal. Talvez eu seja o único cinólatra desta Ilha de Vera Cruz que teima em ter uma idéia quase delirante: mostrar a todos a qualidade cinematográfica da música de Noel Rosa — não apenas como excelente componente, mas como matéria prima para a elaboração de filmes.
É claro que os autores de Noel Rosa – Uma Biografia (Brasília, Linha Gráfica / Editora da Universidade de Brasília, 1990) - o jornalista João Máximo e o pesquisador e compositor Carlos Didier, o Caola [um dos fundadores do Conjunto Coisas Nossas, especializado em música popular brasileira dos anos 1920, 1930 e 1940, e particularmente na música de Noel Rosa]  já chamaram a atenção para a dramaticidade de sua música. E toda canção popular de qualquer outro compositor também tem qualidades para virar filme de qualquer metragem, mas temos dúvidas se o resultado será perfeito Cinema ou mero video-clip. O que este texto pretende provar é a identidade essencial da música de Noel Rosa com o Cinema. Ou seja, como grande compositor, Noel também era um cineasta.
Continuo delirando? É possível. Mas levando-se em conta que foram poucas (para não dizer quase nenhuma) as homenagens de peso ao aniversário de Noel (e bem que a RIOFILME ou qualquer outra entidade ligada ao Cinema e/ou à cultura brasileira poderia ter feito um concurso de roteiros cinematográficos de curta-metragem baseados em suas músicas, o que seria uma ótima e original homenagem) — a não ser a caixa de 14 CDs Noel pela Primeira Vez — uma iniciativa pessoal de Omar Jubran — eu me reservo o direito de delirar.
Portanto, caro leitor, siga este texto. Você é quem constatar e decidir se estou delirando ou se é verdadeira a relação entre Noel Rosa (e sua música) e o Cinema.
Como era de se esperar, esta relação começa do mesmo modo que a sua: como espectador, desde pequeno. (Para ilustrar melhor, uma memória pessoal: comecei a ir ao Cinema bem pequeno, em sessões matinais — isso mesmo, de manhã cedo — de desenhos de Tom & Jerry no recém-falecido Cine Niterói. Aliás, caro leitor, preste atenção: esta também é uma história de salas de Cinema do Rio de Janeiro igualmente falecidas – nenhuma de morte natural.) Pois quem nasceu nos anos 10 iniciou-se na nobre arte de ser cinéfilo assistindo os chamados filmes-em-série, cheios de peripécias, onde no final o herói sempre vence o vilão e fica com a mocinha. O herói tanto podia ser um aventureiro como Eddie Polo – ídolo pós-infância dos pioneiros Humberto Mauro e Eduardo Abelim – ou um cowboy como Tom Mix. Pois foi com ele que Noel começa a se interessar por Cinema, ainda a nível de espectador comum. E lá estava ele e seus amigos nos melhores poeiras da Vila (quando o dinheiro dava, é claro) – o Cine Smart, o Cine Boulevard (28 de Setembro, esquina com Pereira Nunes), ou o Chic, perto da Praça 7 de Março --, acompanhando as aventuras do mais famoso cowboy do Cinema mudo yankee. Muitas vezes, para vê-lo em ação, montando seu cavalo negro Tony, derrubando bandidos, ganhando os melhores olhares da mocinha, (...) vão muitas vezes até o Centro atrás de um poeirinha que exiba filmes do famoso cowboy.
Mas ainda era um espectador comum, que achava o Cinema “a maior diversão”, e que com o passar do tempo, ficaria mais interessado em violões, serenatas e ruas sonoras do que em imagens em movimento mudas. Só mais tarde, o fã de Tom Mix escreveria uma letra que era um deboche completo com o western, seus personagens e situações clichês: Fita de Cinema (c. 1935).
Ela era a fotogênica / Filha de um dono de venda / Ele era um vaqueiro / Sem cavalo e sem fazenda // Numa noite se encontraram / Dentro de uma padaria / E a conversa terminaram / Às onze horas do dia // Mas chegou nesse momento / O pai dessa tal mocinha / A gritar que não convinha / Casar sua filha com mau elemento // E um novo pretendente / Aparece de repente / Do cavalo dando um salto / Pegou na mocinha e gritou: "Mãos ao alto!" // O mocinho neurastênico / Avançou no tal bandido / Levando um tiro bem no peito / E outro dentro do ouvido // E a mocinha preparou bem ligeiro / No colar uma laçada / E rolou o despenhadeiro!
O Cinema só volta a chamar a atenção de Noel no início dos anos 30, compositor já famoso por Com Que Roupa, estudante de medicina que brevemente mandaria o curso e o sonho da família (não dele) às favas. É quando o Cinema já era falado e o nosso Cinema começaria a falar – e no caso, também a cantar – num de seus primeiros filmes sonoros: Coisas Nossas. Noel ainda vai entrar no Cine Eldorado, assistir o tal filme e de lá sair indagando-se o que será realmente nosso, brasileiro, o próprio Cinema falado sendo mais uma novidade importada dos Estados Unidos. É pensando nisso que compõe um de seus melhores sambas, gravado por ele com acompanhamento em que se destacam o piano de Odmar do Amaral Gurgel, o Gaó, e mais uma vez o pistom de Napoleão Tavares. O samba tem título quase igual ao do filme: São Coisas Nossas.
Título quase igual, épocas diferentes, mas bem próximas (o filme de 1930, o samba lançado em 1932)... Deve ser por isso que um dos pioneiros da pesquisa histórica de Cinema Brasileiro cometeu um erro histórico (herrar é umano...) para aventar uma teoria interessante:
"Coisas Nossas" (1930), que também utilizou a aparelhagem sonora dos discos Columbia, teve, no entanto a honra de ser o primeiro filmusical do nosso Cinema, conseguindo alcançar uma razoável qualidade numa época de tateios com a nova técnica. No elenco, além do "pioneiro" Paraguassu, estava Procópio Ferreira com suas 'graças empalhadas' Mas o que dá ao filme uma importância toda especial é o samba-título, talvez o primeiro do gênero no país. Quem o compôs foi Noel Rosa, num de seus momentos de maior espontaneidade e carioquice, traçando um verdadeiro programa temático para um futuro Cinema popular-brasileiro. (O grifo é meu)
Difícil concluir se esta afirmativa de Alex Viany foi mero chute ou intuição. Se for o primeiro caso, não faz mal: chutar, em pesquisa, também é humano; persistir no chute é que é burrice. Se for o segundo caso, fica uma pergunta: teria Noel realmente pensado alguma vez em um projeto de Cinema popular carioca, cujos personagens principais seriam os mesmos personagens da fauna urbana carioca dos anos 30, presentes nas letras de Noel, junto com os malandros prontos e os otários que nasceram para milionários?
Queria ser pandeiro / Pra sentir o dia inteiro / A tua mão na minha pele a batucar / Saudade do violão e da palhoça / Coisa nossa... coisa nossa... / O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas // Malandro que não bebe, que não come / Que não abandona o samba / Pois o samba mata a fome / Morena bem bonita lá da roça / Coisa nossa... coisa nossa... / O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas // Baleiro, jornaleiro, motorneiro, / Condutor e passageiro / Prestamista e vigarista / E o bonde que parece uma carroça... / Coisa nossa... muito nossa... / O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas // Menina que namora / na esquina e no portão / Rapaz casado, com dez filhos, sem tostão / Se o pai descobre o truque dá uma coça / Coisa nossa... muito nossa... / O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas
Isto porque, até onde se sabe, a preocupação de Noel em relação ao Cinema falado tinha relação com a questão da influência cultural estrangeira -- principalmente, sobre (e através de) setores da elite e da inteligência brasileira ligada à modernidade símio-imitativa (leia-se "macacos de imitação"), que até hoje acha a galinha do vizinho made in London, Paris of Miami sempre mais gorda que a brasileira. O que nos leva a um bom tempo depois de Coisas Nossas (o filme, bem entendido) -- ou seja, a 1933.
Nesses três anos,(...), a influência do Cinema saiu dos limites da novidade e da arte para se instalar em praticamente todos os setores da vida brasileira. (...) Simultâneamente aos filmes, a Odeon e a Victor lançam em seus suplementos discos originais ou com letras em português das canções de Cavadoras de Ouro, Rua 42 e belezas em Desfile. Todos se apaixonam pelas extravagâncias de Busby Berkeley.
Claro, o Cinema falado não foi o único culpado de toda transformação. (...) Mas o que realmente a novidade veio mudar foi o linguajar do brasileiro. Antes, tudo que de inglês o povo falava eram os termos do futebol (foul, penalty, free kick, team, corner, off-side), reaquícios das origens algo britânicas e muito elitistas do esporte entre nós. Agora, o inglês está em todas as falas. Dos jovens e dos velhos, dos jornalistas e dos homens de teatro, dos escritores e dos sambistas. Até o malandro aderiu aos 'hellos' e 'by-byes' que se incorporaram aos cumprimentos do carioca. Noel é atento a isso. E o registra num de seus sambas mais perfeitos e duradouros. O espanto pela influência do Cinema falado passará, mas a beleza do samba não:
O Cinema falado é o grande culpado da transformação / Dessa gente que sente / Que um barracão / Prende mais que um xadrez / Lá no morro, se eu fizer uma falseta / A Risoleta / Desiste logo do francês e do inglês // A gíria que o nosso morro criou / Bem cedo a cidade aceitou e usou / Mais tarde o malandro deixou de sambar / Dando pinote / E só querendo dançar o fox-trot // Essa gente hoje em dia / Que tem a mania / Da exibição / Não se lembra que o samba / Não tem tradução / No idioma francês / Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia / É brasileiro, já passou de português // Amor lá no morro é amor pra chuchu / As rimas dos sambas não são I love you / E esse negócio de alô, alô, boy, alô Johnny / Só pode ser conversa de telefone.
O tempo passa, a saúde também, mas parece que o fascínio de Noel pelo Cinema não cessou. E, pelo visto, o Cinema brasileiro dos anos 30 começa a corresponder este fascínio, convidando Noel a colaborar.
Primeiro, são duas músicas suas incluídas na trilha sonora do filme Alô, Alô, Carnaval (1936). De uma, pouca gente se lembra: Não Resta a Menor Dúvida, cantada pelo Bando da Lua:
Você é uma pequena que não resta a menor dúvida / Oh, dúvida! / E eu por sua causa já não pago a minha dívida / Oh, dívida! / Estou só esperando que você me leve o último / Tostão / Pra me dar seu coração // Para possuir seu coração / darei até meu último tostão / Pelo seu amor / Serei aviador / Irei até lamber sabão // Se acaso você não quiser / Fazer por mim aquilo que puder / Eu irei então / Trocar meu coração / por outro coração qualquer.
A outra, um clássico, em parceria com Heitor dos Prazeres. É aquela tragicômica história de
                                                   Um Pierrô apaixonado / Que vivia só cantando / Por causa de uma Colombina / Acabou chorando / Acabou chorando.
Ah, sim, e ainda outro clássico que não entrou no filme: Palpite Infeliz. "Por quê?", perguntará você, amigo ouvinte, digo, leitor. Explica-se: para a filmagem do número, Noel sugeriu aos roteiristas João de Barro e Alberto Ribeiro um cenário de quintal, e a intérprete -- no caso, Aracy de Almeida, a Dama da Central -- cantaria humildemente vestida, lavando roupa num tanque. O problema é que os outros artistas se apresentavam no filme elegantemente vestidos, alguns até de black-tie. Com uma certa razão, Aracy estrilou -- por que diabos iria cantar vestida em trapos?
Quem é você que não sabe o que diz / meu Deus do céu, que palpite infeliz / Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz / Que sempre souberam muito bem / Que a Vila não quer abafar ninguém / Só quer mostrar que faz samba também
Noel insistiu na cena, e Araca se recusou a filmar. Ainda tentaram ensaiar o samba com Rosina, uma das Irmãs Pagãs, mas não deu muito certo. Resultado: o Cinema musical brasileiro perdeu a chance de ter mais uma cena antológica para a posteridade. (André Sampaio acabaria compensando esta frustração histórica do Cinema brasileiro em seu curta Polêmica, em 1998: a cena que não foi filmada para Alô, Alô, Carnaval acabou sendo realizada 62 anos depois, com o samba de Noel na voz de Zezé Motta.)
A seguir, sete músicas para Cidade-Mulher, produção de Carmen Santos, direção de mestre Humberto Mauro. Ali, após tantos sambas e marchas falando de lugares da cidade onde nasceu e viveu até o fim, a primeira homenagem a todo o Rio de Janeiro:
Cidade notável / Inimitável / Maior e mais bela que outra qualquer / Cidade sensível / Irresistível / Cidade do amor, Cidade-Mulher!
Nesta trilha sonora, as várias faces do compositor não poderiam faltar. O Noel romântico, amoroso, em Dama do Cabaré:
Foi num cabaré da Lapa / Que eu conheci você / Fumando cigarro / Entornando champanhe no seu soirée / Dançamos um samba / trocamos um tango por uma palestra / só saímos de lá meia hora depois de descer a orquestra / Em frente à porta um bom carro nos esperava / mas você se despediu e foi pra casa á pé / No outro dia lá nos Arcos eu andava / à procura da dama do cabaré / Eu não sei bem se chorei no momento em que li / a carta que recebi (não me lembro de quem) / Você nela me dizia que quem é da boemia / usa e abusa da diplomacia mas não gosta de ninguém.
E o Noel cronista da cidade em Tarzan, o Filho do Alfaiate:
Quem foi que disse que eu era forte / Nunca pratiquei esporte / Nem conheço futebol / O meu parceiro sempre foi o travesseiro / E eu passo o ano inteiro sem rev um raio de sol / A minha força bruta reside / em um clássico cabide / já cansado de sofrer / Minha armadura / é de casimira dura / que me dá musculatura / mas que pesa e faz doer / Eu poso pros fotógrafos / e distribuo autógrafos / a todas as pequenas lá na praia de manhã / Um argentino disse / me vendo em Copacabana: / No hay fuerza sobrehumana que detenga este Tarzan / De lutas não entendo abacates / Pois o meu grande alfaiate não faz roupa pra brigar / Sou incapaz de machucar uma formiga / Não há homem que consiga nos meus músculos pegar / Cheguei até a ser contratado / Pra subir em um tablado / Pra vencer um campeão / Mas a empresa, pra evitar assassinato / Rasgou logo o meu contrato quando me viu sem roupão.
Depois de sua morte, a música de Noel foi raramente utilizada em filmes. Mas quando os cineastas o fizeram — e aí, louvado seja Deus! — foi sempre de maneira inteligente e criativa, fazendo com que cada canção, mais do que ilustrar, se tornasse peça-chave na construção de uma cena. São nestes momentos em que ela prova a sua qualidade cinematográfica. Alguns dos melhores exemplos estão na parceria entre o cineasta mineiro Carlos Alberto Prates Correia — autor de filmes que misturam invenção, mineiridade e picardia (traço de união entre o poeta da Vila e o cineasta de Montes Claros) — e o compositor Tavinho Moura, responsável pela trilha musical de seus filmes.
A parceria começou em Perdida (1978) — a trajetória tragicômica de uma prostituta. Numa das cenas, a heroína recebe lições de uma prostituta veterana sobre os segredos do métier . Como fundo musical, justamente um trecho da gravação original (voz do próprio Noel Rosa) de Quem dá mais?, um imaginário (mas nem tanto...) leilão do Brasil em que apenas três itens são postos à venda. Um deles, a mulata — uma mulher:
Quem dá mais... / por uma mulata que é diplomada / Em matéria de samba e de batucada / Com as qualidades de moça formosa / fiteira, vaidosa e muito mentirosa...? // Cinco mil-réis... 200 mil-réis... um conto de réis! / Ninguém dá mais de um conto de réis? / O Vasco paga o lote na batata / E em vez de barata / Oferece ao Russinho uma mulata. // Quem dá mais...
Depois de ouvir o samba e ver o filme — ou imaginar a cena — será que qualquer semelhança entre o leilão imaginário da mulata e o futuro leilão da heroína prostituta será mera coincidência?
Outro exemplo, dois anos depois: Cabaret Mineiro, — a viagem surrealista de um jogador aventureiro por uma Minas Gerais nem um pouco recatada, baseada no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade e outros textos da literatura mineira. E à bordo nesta viagem, Nunca... Jamais!, — mais uma mostra da visão anti-romântica de Noel, sobre a mulher — como trilha sonora de uma orgia surreal num bordel do interior:
Meu bem, não me faças sofrer / Tu queres ter liberdade demais / Os homens tu conquistas um por um, sem amar nenhum / Não, não pode ser, nunca... jamais... / Em tempo algum! // (...) / Nada de ti posso aproveitar / Nada tens para me dar / Nem tens nota pra pindura / Todo mundo mundo sabe que és pobre / Não herdaste sangue nobre / e abusaste da feiúra / (Pra quem é pobre a lei é dura...)
Aí, dirá você, caro leitor: “Está certo, todas estas informações são importantes, e justificariam este texto. Mas afinal, que provas você tem para demonstrar a qualidade cinematográfica da música de Noel Rosa?”
Aí é que esta o busilis. Fora uma experiência pessoal, não tenho muitas provas a apresentar a respeito. Por uma razão simples: com tanta atenção à vida de Noel Rosa, quase nenhum cineasta se tocou disso.
A experiência pessoal é um vídeo chamado A Paixão faz dor no crânio mas não ataca o coração. ("Tio, este vídeo você fez em cima daquele samba do Noel chamado Coração?" Nãããão, Pedro Bó...) Com sua permissão, a sinopse:
Em 1931, Noel Rosa afirmava categoricamente num famoso samba: “a paixão faz dor no crânio, mas não ataca o coração”. Em 1998, uma professora afirma que não. Quem está certo? Você decide, enquanto acompanha a conversa de dois estudantes de Medicina — um deles prestes a tomar uma decisão muito importante — e a trajetória de uma autoridade muito importante da República, perto de embarcar numa aventura científica irreversível.
Um breve esclarecimento a respeito da última linha. Era o ano da graça (?) de 1998 — ou, se preferirem, o período do segundo mandato presidencial do hoje oposicionista e defensor dos aposentados FFHH. (O mesmo que, enquanto presidente, aconselhou os aposentados a "não ser vagabundos".) A "autoridade muito importante da República"... não, não era FFHH. Era alguém mais próximo dele — seu ministro da (falta de) Educação, que oscilava entre ser candidato a candidato a algum cargo eletivo em 2002 (presidente, por que não?), cúmplice silencioso dos cortes de verbas das universidades federais e grande carrasco arrogante de seus professores, funcionários e estudantes. (O que lhe custaria caro, politicamente, em 2002 — cortesia de uma greve que estragou suas pretensões eleitorais.)
Para provar que não estou viajando na maionese, proponho um exercício para qualquer roteirista que esteja disposto: transformar em roteiro de curta-metragem o magnífico argumento cinematográfico em forma de música, chamado Prazer em conhecê-lo — que você conheceu no início deste texto. Se não sair um ótimo roteiro, eu juro que eu mudo de nome.
[Uma versão reduzida deste texto foi publicada originalmente na revista Glauberianas Nº.1 (Núcleo dos Estudantes de Cinema da UFF / Departamento de Cinema e Vídeo da UFF, 1998].
NOEL ROSA EM CINEMA E VÍDEO
1936 - Alô, Alô, Carnaval – Direção: Adhemar Gonzaga (Cinédia, RJ): Pierrot Apaixonado (Noel Rosa – Heitor dos Prazeres), com Joel e Gaúcho; Não Resta a Menor Dúvida (Noel Rosa – Hervé Cordovil), com Bando da Lua.
1936 - Cidade-Mulher – Direção: Humberto Mauro (Brasil-Vita, RJ, 1936): Cidade-Mulher (Noel Rosa – Vadico), com Orlando Silva; Dama do Cabaré (Noel Rosa – Vadico) com Orlando Silva; Tarzan, O Filho do Alfaiate (Noel Rosa – Vadico), com José Vassalo (no filme; em disco, por Almirante); Morena Sereia (Noel Rosa – José Maria de Abreu); Numa Noite À Beira-Mar (Noel Rosa – José Maria de Abreu); Na Bahia (Noel Rosa – Vadico), com Bibi Ferreira.
1968 - Edu, Coração de Ouro – Direção: Domingos de Oliveira (RJ): Coisas Nossas (Noel Rosa), com Noel Rosa (Disco original – 1932)
1975 - Perdida – Direção: Carlos Alberto Prates Correa (Cinematográfica Montesclarense, MG): trecho de Quem Dá Mais? (Noel Rosa), com o próprio Noel (Disco original – 1932).
1980 - Cabaret Mineiro – Direção: Carlos Alberto Prates Correa (Cinematográfica Montesclarense, MG/ Zoom Cinematográfica e Corisco Filmes, RJ –): Pra Esquecer (Noel Rosa), com Tavinho Moura e regional; Nunca... Jamais! (Noel Rosa), com Tavinho Moura, Silvia Beraldo e regional.
1978 - Noel Por Noel – Direção: Rogério Sganzerla (RJ) – Documentário de curta-metragem.
1980 - Idolatrada – Direção: Paulo Augusto Gomes (Grupo Novo de Cinema, MG): trecho de Arranjei Um Fraseado (Noel Rosa), com Denise Bandeira.
1990 - Minas, Texas – Direção: Charles Stone(Carlos Alberto Prates Correa) (Cinematográfica Montesclarense, MG / Embrafilme): trecho de Coração (Noel Rosa), com Tavinho Moura.
1991 - Isto É Noel Rosa - Direção: Rogério Sganzerla (Tupan Prod. Cinematográficas, RJ) – Documentário de média-metragem.
1994 - O Cantor de Samba – Direção: Alexandre Dias da Silva (SP) – Documentário de curta-metragem, com texto de José Roberto Torero e cenas de cinejornais e filmes de 1929, inclusive o curta de Paulo Benedetti Vamo Falá do Norte, com o Bando de Tangarás — a única imagem filmada de Noel Rosa.
1994 – Bar Babel - Direção: Antônio Augusto Freitas (PR).
1997 - Com Que Roupa? – Direção: Ricardo Van Steen (SP): Trecho de Gago Apaixonado (Noel Rosa), com Cacá Carvalho; Com Que Roupa (Noel Rosa), com Cacá Carvalho e regional; Tarzan, O Filho do Alfaiate (Noel Rosa – Vadico), com Adriana Lessa; Até amanhã (Noel Rosa), com Elizeth Cardoso (gravação de 1968, nos créditos finais).
1998 - A Paixão Faz Dor no Crânio Mas Nâo Ataca o Coração – Roteiro e direção: Antonio Paiva Filho (Grupo Sombras Elétricas / Curso de Cinema da UFF) – Ficção inspirada no samba anatômico Coração , de Noel Rosa.
1999 - Polêmica – Direção: André Sampaio (Carcará Filmes / Funarte / Curso de Cinema da UFF, RJ): Lenço no Pescoço (Wilson Batista); Rapaz Folgado (Noel Rosa), Feitiço da Vila (Noel Rosa); Conversa Fiada (Wilson Batista); Palpite Infeliz (Noel Rosa); Frankstein da Vila (Wilson Batista); Terra de Cego (Wilson Batista - Noel Rosa)
2007 – Noel – Poeta da Vila – Direção: Ricardo Van Steen. Produção: Paulo Dantas, para Movi&Art e Zohar Cinema. Distribuição: Pandora Filmes. Fotografia: Paulo Vainer. Edição: Umberto Martins. Direção Musical: Luís Felipe de Lima. Produção musical: Arto Lindsay. Direção de Arte: Cláudio Amaral Peixoto. Figurino: Bia Salgado. Elenco: Rafael Raposo (Noel Rosa), Camila Pitanga (Ceci), Paulo César Pereio (Médico), Roberta Rodrigues (Lola), Flávio Bauraqui (Ismael Silva), Jonathan Haagensen (Cartola), Rui Resende (Manuel de Medeiros Rosa - Neca), Rodrigo Amim (Vadico), Fabrizio Fasano (Kid Pepe), Wilson das Neves (Papagaio), Laura Lustosa (Martha), Leandra Miranda (Deolinda), Pedro Miranda (Mário Reis), Dalva Rodrigues (Olindina), Carolina Bezerra (Araci de Almeida), Érika Puga (Justina), Tia Surica (Negona), Fábio Barreto (Saturno), Lidiane Borges (Lindaura), Supla (Mário Lago), Mário Broder (Wilson Batista), Valéria Castro (Orestina), Daniel de Castro (Hélio), Ingrid Conte (Maria), Alexandre da Costa (Delegado), Milton Filho (Nilton), Eduardo Gallotti (Ernani), Cristiano Gualda (Francisco Alves), Fábio Lago (Adhemar Casé).
© 1998 – Antonio Paiva Filho
© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS