01 fevereiro, 2012

DO ARQUIVO DA REVISTA SOMBRAS ELÉTRICAS (I) - CRÔNICA DO CINEMA NOELIANO (ou: O Samba, A Prontidão e Outras Bossas a 24 Quadros Por Segundo)

A partir de hoje, o blog da revista SOMBRAS ELÉTRICAS inicia a republicação de artigos publicados originalmente na revista (que está fora do ar por motivos alheios à nossa vontade).
Começamos com um artigo sobre as relações entre a música de Noel Rosa e o cinema, publicado em SOMBRAS ELÉTRICAS nº 2 (Jan./Fev. 2004).

CRÔNICA DO CINEMA NOELIANO (ou: O Samba, A Prontidão e Outras Bossas a 24 Quadros Por Segundo)
Antonio Paiva Filho
Como vai, caro leitor? Tudo bem?
Imagine você que ontem eu fui assistir um curta-metragem muito interessante lá no... onde foi que eu vi este filme mesmo?... bom, deixa pra lá. O que importa é a história do curta. Quer que eu conte? Então vamos lá:
É noite. Há uma festa na casa de alguém. Todos estão se divertindo, conversando e dançando. Uma jovem, Maria, está na festa, em companhia de seu namorado.
Eis que João chega à festa. A dona da casa pega João pelo braço e o apresenta a alguns convidados.
É quando, finalmente, a dona da casa apresenta João à Maria... sem saber que os dois já se conheciam antes; os dois se olham fixamente.
A partir daí, um flash-back, em cenas curtas, da relação amorosa que eles tiveram: o amor, as brigas por ciúmes, o rompimento.
Volta para a festa; João e Maria continuam olhando-se mutuamente, pois os dois ainda sentem saudades um do outro.
Apesar disso, quando João começa a esboçar um sorriso e um cumprimento amigável, Maria -- lembrando-se que seu novo namorado, bem ciumento, está ao seu lado -- estende a mão e o cumprimenta formalmente: "Prazer em conhecê-lo".
A frieza e a formalidade de Maria são um choque para João; no entanto, ele mantém o sangue frio e responde: "O prazer é todo meu"; depois se afasta.
Maria e seu namorado começam a discutir em voz baixa, por causa de João. Em meio à discussão, Maria vê João sair da festa à francesa, discretamente.
Gostou? Ótimo, principalmente se você nunca foi grande apreciador do curta-metragem. O nome do curta? Prazer em Conhecê-lo.
Engraçado... este nome não lhe é estranho, não é, caro leitor?... Mas agora você quer saber: onde este curta está sendo exibido?
Puxa, bem que estou tentando me lembrar... onde foi mesmo? Ah, lembrei: não foi em cinema nenhum. Eu vi este filme em casa. Ou melhor, eu o ouvi em casa, na voz de Mário Reis:
Quantas vezes nós sorrimos sem vontade / Com o ódio a transbordar no coração / Por um simples dever da sociedade / No momento de uma apresentação // Se eu soubesse que em tal festa te encontrava / Não iria desmanchar o teu prazer / Porque, se lá não fosse eu não lembrava / Um passado que tanto nos fez sofrer // Lá no canto vi o meu rival antigo / Ex-amigo / Que aguardava o escândalo fatal / Fiquei branco, amarelo, furta-cor / De terror / Sem achar uma idéia genial / Ainda lembro que ficamos de repente / Frente a frente / Naquele instante, mais frios do que gelo / Mas, sorrindo, apertaste a minha mão / Dizendo então:/"Tenho muito prazer em conhecê-lo" // Mas eu notei que alguém impaciente / descontente / Ia mais tarde te repreender / Tão ciumento que até nem quis saber / Que mais prazer / Eu teria em não te conhecer.
Pois é, caro leitor, o filme nunca existiu, a não ser na cabeça de um mero escriba ouvinte de músicas de Noel Rosa. Mas se você embarcou direitinho na minha trip cinematográfico-musical, deve ter observado como foi fácil imaginar imagens, planos, diálogos etc. a partir da letra, e como deve ter sido fácil imaginar o ritmo deste filme imaginário a partir da melodia. Se não embarcou, não faz mal. Talvez eu seja o único cinólatra desta Ilha de Vera Cruz que teima em ter uma idéia quase delirante: mostrar a todos a qualidade cinematográfica da música de Noel Rosa — não apenas como excelente componente, mas como matéria prima para a elaboração de filmes.
É claro que os autores de Noel Rosa – Uma Biografia (Brasília, Linha Gráfica / Editora da Universidade de Brasília, 1990) - o jornalista João Máximo e o pesquisador e compositor Carlos Didier, o Caola [um dos fundadores do Conjunto Coisas Nossas, especializado em música popular brasileira dos anos 1920, 1930 e 1940, e particularmente na música de Noel Rosa]  já chamaram a atenção para a dramaticidade de sua música. E toda canção popular de qualquer outro compositor também tem qualidades para virar filme de qualquer metragem, mas temos dúvidas se o resultado será perfeito Cinema ou mero video-clip. O que este texto pretende provar é a identidade essencial da música de Noel Rosa com o Cinema. Ou seja, como grande compositor, Noel também era um cineasta.
Continuo delirando? É possível. Mas levando-se em conta que foram poucas (para não dizer quase nenhuma) as homenagens de peso ao aniversário de Noel (e bem que a RIOFILME ou qualquer outra entidade ligada ao Cinema e/ou à cultura brasileira poderia ter feito um concurso de roteiros cinematográficos de curta-metragem baseados em suas músicas, o que seria uma ótima e original homenagem) — a não ser a caixa de 14 CDs Noel pela Primeira Vez — uma iniciativa pessoal de Omar Jubran — eu me reservo o direito de delirar.
Portanto, caro leitor, siga este texto. Você é quem constatar e decidir se estou delirando ou se é verdadeira a relação entre Noel Rosa (e sua música) e o Cinema.
Como era de se esperar, esta relação começa do mesmo modo que a sua: como espectador, desde pequeno. (Para ilustrar melhor, uma memória pessoal: comecei a ir ao Cinema bem pequeno, em sessões matinais — isso mesmo, de manhã cedo — de desenhos de Tom & Jerry no recém-falecido Cine Niterói. Aliás, caro leitor, preste atenção: esta também é uma história de salas de Cinema do Rio de Janeiro igualmente falecidas – nenhuma de morte natural.) Pois quem nasceu nos anos 10 iniciou-se na nobre arte de ser cinéfilo assistindo os chamados filmes-em-série, cheios de peripécias, onde no final o herói sempre vence o vilão e fica com a mocinha. O herói tanto podia ser um aventureiro como Eddie Polo – ídolo pós-infância dos pioneiros Humberto Mauro e Eduardo Abelim – ou um cowboy como Tom Mix. Pois foi com ele que Noel começa a se interessar por Cinema, ainda a nível de espectador comum. E lá estava ele e seus amigos nos melhores poeiras da Vila (quando o dinheiro dava, é claro) – o Cine Smart, o Cine Boulevard (28 de Setembro, esquina com Pereira Nunes), ou o Chic, perto da Praça 7 de Março --, acompanhando as aventuras do mais famoso cowboy do Cinema mudo yankee. Muitas vezes, para vê-lo em ação, montando seu cavalo negro Tony, derrubando bandidos, ganhando os melhores olhares da mocinha, (...) vão muitas vezes até o Centro atrás de um poeirinha que exiba filmes do famoso cowboy.
Mas ainda era um espectador comum, que achava o Cinema “a maior diversão”, e que com o passar do tempo, ficaria mais interessado em violões, serenatas e ruas sonoras do que em imagens em movimento mudas. Só mais tarde, o fã de Tom Mix escreveria uma letra que era um deboche completo com o western, seus personagens e situações clichês: Fita de Cinema (c. 1935).
Ela era a fotogênica / Filha de um dono de venda / Ele era um vaqueiro / Sem cavalo e sem fazenda // Numa noite se encontraram / Dentro de uma padaria / E a conversa terminaram / Às onze horas do dia // Mas chegou nesse momento / O pai dessa tal mocinha / A gritar que não convinha / Casar sua filha com mau elemento // E um novo pretendente / Aparece de repente / Do cavalo dando um salto / Pegou na mocinha e gritou: "Mãos ao alto!" // O mocinho neurastênico / Avançou no tal bandido / Levando um tiro bem no peito / E outro dentro do ouvido // E a mocinha preparou bem ligeiro / No colar uma laçada / E rolou o despenhadeiro!
O Cinema só volta a chamar a atenção de Noel no início dos anos 30, compositor já famoso por Com Que Roupa, estudante de medicina que brevemente mandaria o curso e o sonho da família (não dele) às favas. É quando o Cinema já era falado e o nosso Cinema começaria a falar – e no caso, também a cantar – num de seus primeiros filmes sonoros: Coisas Nossas. Noel ainda vai entrar no Cine Eldorado, assistir o tal filme e de lá sair indagando-se o que será realmente nosso, brasileiro, o próprio Cinema falado sendo mais uma novidade importada dos Estados Unidos. É pensando nisso que compõe um de seus melhores sambas, gravado por ele com acompanhamento em que se destacam o piano de Odmar do Amaral Gurgel, o Gaó, e mais uma vez o pistom de Napoleão Tavares. O samba tem título quase igual ao do filme: São Coisas Nossas.
Título quase igual, épocas diferentes, mas bem próximas (o filme de 1930, o samba lançado em 1932)... Deve ser por isso que um dos pioneiros da pesquisa histórica de Cinema Brasileiro cometeu um erro histórico (herrar é umano...) para aventar uma teoria interessante:
"Coisas Nossas" (1930), que também utilizou a aparelhagem sonora dos discos Columbia, teve, no entanto a honra de ser o primeiro filmusical do nosso Cinema, conseguindo alcançar uma razoável qualidade numa época de tateios com a nova técnica. No elenco, além do "pioneiro" Paraguassu, estava Procópio Ferreira com suas 'graças empalhadas' Mas o que dá ao filme uma importância toda especial é o samba-título, talvez o primeiro do gênero no país. Quem o compôs foi Noel Rosa, num de seus momentos de maior espontaneidade e carioquice, traçando um verdadeiro programa temático para um futuro Cinema popular-brasileiro. (O grifo é meu)
Difícil concluir se esta afirmativa de Alex Viany foi mero chute ou intuição. Se for o primeiro caso, não faz mal: chutar, em pesquisa, também é humano; persistir no chute é que é burrice. Se for o segundo caso, fica uma pergunta: teria Noel realmente pensado alguma vez em um projeto de Cinema popular carioca, cujos personagens principais seriam os mesmos personagens da fauna urbana carioca dos anos 30, presentes nas letras de Noel, junto com os malandros prontos e os otários que nasceram para milionários?
Queria ser pandeiro / Pra sentir o dia inteiro / A tua mão na minha pele a batucar / Saudade do violão e da palhoça / Coisa nossa... coisa nossa... / O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas // Malandro que não bebe, que não come / Que não abandona o samba / Pois o samba mata a fome / Morena bem bonita lá da roça / Coisa nossa... coisa nossa... / O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas // Baleiro, jornaleiro, motorneiro, / Condutor e passageiro / Prestamista e vigarista / E o bonde que parece uma carroça... / Coisa nossa... muito nossa... / O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas // Menina que namora / na esquina e no portão / Rapaz casado, com dez filhos, sem tostão / Se o pai descobre o truque dá uma coça / Coisa nossa... muito nossa... / O samba, a prontidão e outras bossas / São nossas coisas / São coisas nossas
Isto porque, até onde se sabe, a preocupação de Noel em relação ao Cinema falado tinha relação com a questão da influência cultural estrangeira -- principalmente, sobre (e através de) setores da elite e da inteligência brasileira ligada à modernidade símio-imitativa (leia-se "macacos de imitação"), que até hoje acha a galinha do vizinho made in London, Paris of Miami sempre mais gorda que a brasileira. O que nos leva a um bom tempo depois de Coisas Nossas (o filme, bem entendido) -- ou seja, a 1933.
Nesses três anos,(...), a influência do Cinema saiu dos limites da novidade e da arte para se instalar em praticamente todos os setores da vida brasileira. (...) Simultâneamente aos filmes, a Odeon e a Victor lançam em seus suplementos discos originais ou com letras em português das canções de Cavadoras de Ouro, Rua 42 e belezas em Desfile. Todos se apaixonam pelas extravagâncias de Busby Berkeley.
Claro, o Cinema falado não foi o único culpado de toda transformação. (...) Mas o que realmente a novidade veio mudar foi o linguajar do brasileiro. Antes, tudo que de inglês o povo falava eram os termos do futebol (foul, penalty, free kick, team, corner, off-side), reaquícios das origens algo britânicas e muito elitistas do esporte entre nós. Agora, o inglês está em todas as falas. Dos jovens e dos velhos, dos jornalistas e dos homens de teatro, dos escritores e dos sambistas. Até o malandro aderiu aos 'hellos' e 'by-byes' que se incorporaram aos cumprimentos do carioca. Noel é atento a isso. E o registra num de seus sambas mais perfeitos e duradouros. O espanto pela influência do Cinema falado passará, mas a beleza do samba não:
O Cinema falado é o grande culpado da transformação / Dessa gente que sente / Que um barracão / Prende mais que um xadrez / Lá no morro, se eu fizer uma falseta / A Risoleta / Desiste logo do francês e do inglês // A gíria que o nosso morro criou / Bem cedo a cidade aceitou e usou / Mais tarde o malandro deixou de sambar / Dando pinote / E só querendo dançar o fox-trot // Essa gente hoje em dia / Que tem a mania / Da exibição / Não se lembra que o samba / Não tem tradução / No idioma francês / Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia / É brasileiro, já passou de português // Amor lá no morro é amor pra chuchu / As rimas dos sambas não são I love you / E esse negócio de alô, alô, boy, alô Johnny / Só pode ser conversa de telefone.
O tempo passa, a saúde também, mas parece que o fascínio de Noel pelo Cinema não cessou. E, pelo visto, o Cinema brasileiro dos anos 30 começa a corresponder este fascínio, convidando Noel a colaborar.
Primeiro, são duas músicas suas incluídas na trilha sonora do filme Alô, Alô, Carnaval (1936). De uma, pouca gente se lembra: Não Resta a Menor Dúvida, cantada pelo Bando da Lua:
Você é uma pequena que não resta a menor dúvida / Oh, dúvida! / E eu por sua causa já não pago a minha dívida / Oh, dívida! / Estou só esperando que você me leve o último / Tostão / Pra me dar seu coração // Para possuir seu coração / darei até meu último tostão / Pelo seu amor / Serei aviador / Irei até lamber sabão // Se acaso você não quiser / Fazer por mim aquilo que puder / Eu irei então / Trocar meu coração / por outro coração qualquer.
A outra, um clássico, em parceria com Heitor dos Prazeres. É aquela tragicômica história de
                                                   Um Pierrô apaixonado / Que vivia só cantando / Por causa de uma Colombina / Acabou chorando / Acabou chorando.
Ah, sim, e ainda outro clássico que não entrou no filme: Palpite Infeliz. "Por quê?", perguntará você, amigo ouvinte, digo, leitor. Explica-se: para a filmagem do número, Noel sugeriu aos roteiristas João de Barro e Alberto Ribeiro um cenário de quintal, e a intérprete -- no caso, Aracy de Almeida, a Dama da Central -- cantaria humildemente vestida, lavando roupa num tanque. O problema é que os outros artistas se apresentavam no filme elegantemente vestidos, alguns até de black-tie. Com uma certa razão, Aracy estrilou -- por que diabos iria cantar vestida em trapos?
Quem é você que não sabe o que diz / meu Deus do céu, que palpite infeliz / Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz / Que sempre souberam muito bem / Que a Vila não quer abafar ninguém / Só quer mostrar que faz samba também
Noel insistiu na cena, e Araca se recusou a filmar. Ainda tentaram ensaiar o samba com Rosina, uma das Irmãs Pagãs, mas não deu muito certo. Resultado: o Cinema musical brasileiro perdeu a chance de ter mais uma cena antológica para a posteridade. (André Sampaio acabaria compensando esta frustração histórica do Cinema brasileiro em seu curta Polêmica, em 1998: a cena que não foi filmada para Alô, Alô, Carnaval acabou sendo realizada 62 anos depois, com o samba de Noel na voz de Zezé Motta.)
A seguir, sete músicas para Cidade-Mulher, produção de Carmen Santos, direção de mestre Humberto Mauro. Ali, após tantos sambas e marchas falando de lugares da cidade onde nasceu e viveu até o fim, a primeira homenagem a todo o Rio de Janeiro:
Cidade notável / Inimitável / Maior e mais bela que outra qualquer / Cidade sensível / Irresistível / Cidade do amor, Cidade-Mulher!
Nesta trilha sonora, as várias faces do compositor não poderiam faltar. O Noel romântico, amoroso, em Dama do Cabaré:
Foi num cabaré da Lapa / Que eu conheci você / Fumando cigarro / Entornando champanhe no seu soirée / Dançamos um samba / trocamos um tango por uma palestra / só saímos de lá meia hora depois de descer a orquestra / Em frente à porta um bom carro nos esperava / mas você se despediu e foi pra casa á pé / No outro dia lá nos Arcos eu andava / à procura da dama do cabaré / Eu não sei bem se chorei no momento em que li / a carta que recebi (não me lembro de quem) / Você nela me dizia que quem é da boemia / usa e abusa da diplomacia mas não gosta de ninguém.
E o Noel cronista da cidade em Tarzan, o Filho do Alfaiate:
Quem foi que disse que eu era forte / Nunca pratiquei esporte / Nem conheço futebol / O meu parceiro sempre foi o travesseiro / E eu passo o ano inteiro sem rev um raio de sol / A minha força bruta reside / em um clássico cabide / já cansado de sofrer / Minha armadura / é de casimira dura / que me dá musculatura / mas que pesa e faz doer / Eu poso pros fotógrafos / e distribuo autógrafos / a todas as pequenas lá na praia de manhã / Um argentino disse / me vendo em Copacabana: / No hay fuerza sobrehumana que detenga este Tarzan / De lutas não entendo abacates / Pois o meu grande alfaiate não faz roupa pra brigar / Sou incapaz de machucar uma formiga / Não há homem que consiga nos meus músculos pegar / Cheguei até a ser contratado / Pra subir em um tablado / Pra vencer um campeão / Mas a empresa, pra evitar assassinato / Rasgou logo o meu contrato quando me viu sem roupão.
Depois de sua morte, a música de Noel foi raramente utilizada em filmes. Mas quando os cineastas o fizeram — e aí, louvado seja Deus! — foi sempre de maneira inteligente e criativa, fazendo com que cada canção, mais do que ilustrar, se tornasse peça-chave na construção de uma cena. São nestes momentos em que ela prova a sua qualidade cinematográfica. Alguns dos melhores exemplos estão na parceria entre o cineasta mineiro Carlos Alberto Prates Correia — autor de filmes que misturam invenção, mineiridade e picardia (traço de união entre o poeta da Vila e o cineasta de Montes Claros) — e o compositor Tavinho Moura, responsável pela trilha musical de seus filmes.
A parceria começou em Perdida (1978) — a trajetória tragicômica de uma prostituta. Numa das cenas, a heroína recebe lições de uma prostituta veterana sobre os segredos do métier . Como fundo musical, justamente um trecho da gravação original (voz do próprio Noel Rosa) de Quem dá mais?, um imaginário (mas nem tanto...) leilão do Brasil em que apenas três itens são postos à venda. Um deles, a mulata — uma mulher:
Quem dá mais... / por uma mulata que é diplomada / Em matéria de samba e de batucada / Com as qualidades de moça formosa / fiteira, vaidosa e muito mentirosa...? // Cinco mil-réis... 200 mil-réis... um conto de réis! / Ninguém dá mais de um conto de réis? / O Vasco paga o lote na batata / E em vez de barata / Oferece ao Russinho uma mulata. // Quem dá mais...
Depois de ouvir o samba e ver o filme — ou imaginar a cena — será que qualquer semelhança entre o leilão imaginário da mulata e o futuro leilão da heroína prostituta será mera coincidência?
Outro exemplo, dois anos depois: Cabaret Mineiro, — a viagem surrealista de um jogador aventureiro por uma Minas Gerais nem um pouco recatada, baseada no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade e outros textos da literatura mineira. E à bordo nesta viagem, Nunca... Jamais!, — mais uma mostra da visão anti-romântica de Noel, sobre a mulher — como trilha sonora de uma orgia surreal num bordel do interior:
Meu bem, não me faças sofrer / Tu queres ter liberdade demais / Os homens tu conquistas um por um, sem amar nenhum / Não, não pode ser, nunca... jamais... / Em tempo algum! // (...) / Nada de ti posso aproveitar / Nada tens para me dar / Nem tens nota pra pindura / Todo mundo mundo sabe que és pobre / Não herdaste sangue nobre / e abusaste da feiúra / (Pra quem é pobre a lei é dura...)
Aí, dirá você, caro leitor: “Está certo, todas estas informações são importantes, e justificariam este texto. Mas afinal, que provas você tem para demonstrar a qualidade cinematográfica da música de Noel Rosa?”
Aí é que esta o busilis. Fora uma experiência pessoal, não tenho muitas provas a apresentar a respeito. Por uma razão simples: com tanta atenção à vida de Noel Rosa, quase nenhum cineasta se tocou disso.
A experiência pessoal é um vídeo chamado A Paixão faz dor no crânio mas não ataca o coração. ("Tio, este vídeo você fez em cima daquele samba do Noel chamado Coração?" Nãããão, Pedro Bó...) Com sua permissão, a sinopse:
Em 1931, Noel Rosa afirmava categoricamente num famoso samba: “a paixão faz dor no crânio, mas não ataca o coração”. Em 1998, uma professora afirma que não. Quem está certo? Você decide, enquanto acompanha a conversa de dois estudantes de Medicina — um deles prestes a tomar uma decisão muito importante — e a trajetória de uma autoridade muito importante da República, perto de embarcar numa aventura científica irreversível.
Um breve esclarecimento a respeito da última linha. Era o ano da graça (?) de 1998 — ou, se preferirem, o período do segundo mandato presidencial do hoje oposicionista e defensor dos aposentados FFHH. (O mesmo que, enquanto presidente, aconselhou os aposentados a "não ser vagabundos".) A "autoridade muito importante da República"... não, não era FFHH. Era alguém mais próximo dele — seu ministro da (falta de) Educação, que oscilava entre ser candidato a candidato a algum cargo eletivo em 2002 (presidente, por que não?), cúmplice silencioso dos cortes de verbas das universidades federais e grande carrasco arrogante de seus professores, funcionários e estudantes. (O que lhe custaria caro, politicamente, em 2002 — cortesia de uma greve que estragou suas pretensões eleitorais.)
Para provar que não estou viajando na maionese, proponho um exercício para qualquer roteirista que esteja disposto: transformar em roteiro de curta-metragem o magnífico argumento cinematográfico em forma de música, chamado Prazer em conhecê-lo — que você conheceu no início deste texto. Se não sair um ótimo roteiro, eu juro que eu mudo de nome.
[Uma versão reduzida deste texto foi publicada originalmente na revista Glauberianas Nº.1 (Núcleo dos Estudantes de Cinema da UFF / Departamento de Cinema e Vídeo da UFF, 1998].
NOEL ROSA EM CINEMA E VÍDEO
1936 - Alô, Alô, Carnaval – Direção: Adhemar Gonzaga (Cinédia, RJ): Pierrot Apaixonado (Noel Rosa – Heitor dos Prazeres), com Joel e Gaúcho; Não Resta a Menor Dúvida (Noel Rosa – Hervé Cordovil), com Bando da Lua.
1936 - Cidade-Mulher – Direção: Humberto Mauro (Brasil-Vita, RJ, 1936): Cidade-Mulher (Noel Rosa – Vadico), com Orlando Silva; Dama do Cabaré (Noel Rosa – Vadico) com Orlando Silva; Tarzan, O Filho do Alfaiate (Noel Rosa – Vadico), com José Vassalo (no filme; em disco, por Almirante); Morena Sereia (Noel Rosa – José Maria de Abreu); Numa Noite À Beira-Mar (Noel Rosa – José Maria de Abreu); Na Bahia (Noel Rosa – Vadico), com Bibi Ferreira.
1968 - Edu, Coração de Ouro – Direção: Domingos de Oliveira (RJ): Coisas Nossas (Noel Rosa), com Noel Rosa (Disco original – 1932)
1975 - Perdida – Direção: Carlos Alberto Prates Correa (Cinematográfica Montesclarense, MG): trecho de Quem Dá Mais? (Noel Rosa), com o próprio Noel (Disco original – 1932).
1980 - Cabaret Mineiro – Direção: Carlos Alberto Prates Correa (Cinematográfica Montesclarense, MG/ Zoom Cinematográfica e Corisco Filmes, RJ –): Pra Esquecer (Noel Rosa), com Tavinho Moura e regional; Nunca... Jamais! (Noel Rosa), com Tavinho Moura, Silvia Beraldo e regional.
1978 - Noel Por Noel – Direção: Rogério Sganzerla (RJ) – Documentário de curta-metragem.
1980 - Idolatrada – Direção: Paulo Augusto Gomes (Grupo Novo de Cinema, MG): trecho de Arranjei Um Fraseado (Noel Rosa), com Denise Bandeira.
1990 - Minas, Texas – Direção: Charles Stone(Carlos Alberto Prates Correa) (Cinematográfica Montesclarense, MG / Embrafilme): trecho de Coração (Noel Rosa), com Tavinho Moura.
1991 - Isto É Noel Rosa - Direção: Rogério Sganzerla (Tupan Prod. Cinematográficas, RJ) – Documentário de média-metragem.
1994 - O Cantor de Samba – Direção: Alexandre Dias da Silva (SP) – Documentário de curta-metragem, com texto de José Roberto Torero e cenas de cinejornais e filmes de 1929, inclusive o curta de Paulo Benedetti Vamo Falá do Norte, com o Bando de Tangarás — a única imagem filmada de Noel Rosa.
1994 – Bar Babel - Direção: Antônio Augusto Freitas (PR).
1997 - Com Que Roupa? – Direção: Ricardo Van Steen (SP): Trecho de Gago Apaixonado (Noel Rosa), com Cacá Carvalho; Com Que Roupa (Noel Rosa), com Cacá Carvalho e regional; Tarzan, O Filho do Alfaiate (Noel Rosa – Vadico), com Adriana Lessa; Até amanhã (Noel Rosa), com Elizeth Cardoso (gravação de 1968, nos créditos finais).
1998 - A Paixão Faz Dor no Crânio Mas Nâo Ataca o Coração – Roteiro e direção: Antonio Paiva Filho (Grupo Sombras Elétricas / Curso de Cinema da UFF) – Ficção inspirada no samba anatômico Coração , de Noel Rosa.
1999 - Polêmica – Direção: André Sampaio (Carcará Filmes / Funarte / Curso de Cinema da UFF, RJ): Lenço no Pescoço (Wilson Batista); Rapaz Folgado (Noel Rosa), Feitiço da Vila (Noel Rosa); Conversa Fiada (Wilson Batista); Palpite Infeliz (Noel Rosa); Frankstein da Vila (Wilson Batista); Terra de Cego (Wilson Batista - Noel Rosa)
2007 – Noel – Poeta da Vila – Direção: Ricardo Van Steen. Produção: Paulo Dantas, para Movi&Art e Zohar Cinema. Distribuição: Pandora Filmes. Fotografia: Paulo Vainer. Edição: Umberto Martins. Direção Musical: Luís Felipe de Lima. Produção musical: Arto Lindsay. Direção de Arte: Cláudio Amaral Peixoto. Figurino: Bia Salgado. Elenco: Rafael Raposo (Noel Rosa), Camila Pitanga (Ceci), Paulo César Pereio (Médico), Roberta Rodrigues (Lola), Flávio Bauraqui (Ismael Silva), Jonathan Haagensen (Cartola), Rui Resende (Manuel de Medeiros Rosa - Neca), Rodrigo Amim (Vadico), Fabrizio Fasano (Kid Pepe), Wilson das Neves (Papagaio), Laura Lustosa (Martha), Leandra Miranda (Deolinda), Pedro Miranda (Mário Reis), Dalva Rodrigues (Olindina), Carolina Bezerra (Araci de Almeida), Érika Puga (Justina), Tia Surica (Negona), Fábio Barreto (Saturno), Lidiane Borges (Lindaura), Supla (Mário Lago), Mário Broder (Wilson Batista), Valéria Castro (Orestina), Daniel de Castro (Hélio), Ingrid Conte (Maria), Alexandre da Costa (Delegado), Milton Filho (Nilton), Eduardo Gallotti (Ernani), Cristiano Gualda (Francisco Alves), Fábio Lago (Adhemar Casé).
© 1998 – Antonio Paiva Filho
© 2004 – SOMBRAS ELÉTRICAS

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