Ninguém
sabe, mas sou uma pessoa rica. Não, não de dinheiro. Mas de amigos. Ter amigos
é bem mais valioso do que ter conta nas Ilhas Cayman.
Uma
destas amigas é Maria Caú, que escreveu um texto magnífico no Mulheres que Escrevem, do Medium, que eu faço
questão de compartilhar com vocês que acompanham esta séria série.
Lá vai.
Quem tem medo de (se) dizer bissexual?
Minha
longa jornada rumo à autoaceitação
Maria Caú
Formada em Cinema, doutoranda em Literatura Comparada, autora
de "Olhar o mar: Woody Allen e Philip Roth - a exigência da morte",
viciada em café e Netflix.
Jun
26
Entendeu? Ela não está indecisa.
(Foto de Bruno Poletti/Folhapress)
Aviso: esse é um artigo sobre “coming out”.
Começar este texto é, ao mesmo tempo,
extremamente difícil e terrivelmente natural. Difícil porque preciso lidar mais
uma vez com a possibilidade de me expor abertamente e as consequências imprevisíveis
deste ato. Natural porque já comecei este texto muitas vezes, de diferentes
formas, com muitos estilos e, ainda assim, ele jamais ganhou um ponto final e
nunca deixou as pastas mais escondidas do meu laptop. Tenho, primeiro e mais
uma vez, que lidar com um fato: talvez eu não tenha coragem de publicar o que
estou escrevendo por impulso e por necessidade. Talvez. Se for assim, serei
minha única leitora e tentarei ser bastante gentil comigo desta vez. É um
processo lento e duro. Agora, se você está lendo isso, significa que tive
coragem. Estou orgulhosa da minha coragem, se for este o caso. Mas sigo feliz
de estar escrevendo, de qualquer maneira, ainda que estas linhas nunca sejam
lidas por um Outro. “É
preciso imaginar Sísifo feliz”, já disse Camus.
Vamos começar por onde sei começar, ainda que
não seja o começo. [Se você
se sentir confuso e atordoado lendo isso aqui, saiba que é justo esta a
sensação que eu quis trazer à tona.] Dias atrás, P., antropóloga e minha amiga
há 20 anos, deixou escapar durante um almoço: “Acho que você é a única pessoal
bissexual assumida que eu conheço”, afirmação que primeiro me surpreendeu,
depois me assustou. Pensei muito nessas duas palavras: bissexual/assumida.
Bissexual. Sim, eu sou bissexual. [Pausa para um suspiro porque escrever isso
assim é um alívio tormentoso]. Acho
que sempre foi assim. Tenho a vaga recordação de ter uns 12 anos e me
autocensurar ao andar pela rua porque eu não deveria estar olhando para homens
e mulheres com o mesmo nascente interesse. O mais louco é que, para mim, o
grande problema então não era olhar para mulheres, mas olhar para ambos — nesse ponto, a sociedade já tinha me vencido: eu já acreditava que não havia lugar para um olhar como o meu. Hoje, 22 anos depois, ainda me
surpreendo com a capacidade dos meus olhos de se deterem em belezas muitas
vezes tão contrastantes, e é engraçado perceber a
facilidade com que a minha atenção se desvia, num carro de metrô, daquele cara
barbudo de camisa social indo pro trabalho para aquela moça de dreads e camiseta dos Ramones. Demorei
a aprender a conviver com essa elasticidade do olhar e demorei mais ainda para
me orgulhar dela.
Coração com símbolo dos bissexuais
Vamos culpar o mundo em que eu cresci? Nasci em 1983 e morei até os 19 anos em
Araruama, uma cidade que seria do interior, não fosse a praia e a proximidade
com o Rio de Janeiro. No mundo em que me tornei adolescente, não existia essa
coisa de bissexualidade. Mentira.
Tinha o David Bowie, é verdade. Mas embora eu adore o David Bowie e o agradeça
por trazer a palavra para o meu vocabulário, é meio difícil para uma
adolescente que mora numa chácara se identificar com o David Bowie. “O cara é
uma estrela do rock, eles não seguem as mesmas regras de todo mundo”, pensava
eu, que continuava acreditando piamente que era preciso escolher.
Parecia uma escolha simples. Claramente, eu
me sentia atraída por garotos desde cedo, então essa deveria ser uma negociação
bem fácil comigo mesma. A atração que sentia por meninas, no entanto, me
confundia, e por um bom tempo tive sucesso em não pensar mais profundamente no
assunto. Até o dia em que fui visitar D., um dos meus melhores amigos da época,
a pessoa com quem eu bebia tequila e fumava escondido, jogava RPG e amaldiçoava
a existência — coisas típicas dos 16, 17 anos. Me recordo perfeitamente a cena. Eu parada na
sala dele, D. diz: “Minha prima taí” e quase que
instantaneamente desce as escadas uma moça ruiva, um ou dois anos mais velha do
que eu, numa camiseta branca dos Rolling Stones. Nunca me esqueci daquela
camiseta branca dos Rolling Stones. Foi um daqueles momentos em que você sente
que os seus pensamentos estão aparecendo num balão de quadrinhos, em negrito,
bem em cima da sua cabeça: “Tá todo mundo notando?”. O nome dela era Renata.
Minha mãe se chama Renata, eu casei com um Renato — acho que o nome me persegue.
Nada mais aconteceu: sem clímax nessa trama,
além do fato de a heroína ter tido imensas dificuldades para justificar seus
sentimentos repentinos face à sua heterossexualidade proclamada. E assim vamos,
meus amigos. Por anos. Anos. Eu digo sempre que a bissexualidade é um
eterno sair do armário, mesmo que seja só para você mesma. Heterossexuais não
precisam se assumir, gays se assumem um par de vezes. Bissexuais vão se assumir
por uma vida inteira. E assim foi. 19 anos, prestes a entrar na faculdade,
conheci um cara mais velho, me apaixonei, tive meu coração partido, tudo pela
primeira vez, porque sou desses late
bloomers da vida. (Pausa para um parêntesis deste escriba
chato, para esclarecer a quem não domina o inglês o que é um late bloomer: "Pessoa que ainda não amadureceu; que ainda não
desabrochou; que tem desenvolvimento tardio; que começou a amadurecer tarde". Fim do parêntesis. Vai, amiga.) Meses depois me encantei por uma colega de
sala da UFF. Ela era uma hiponga de piercing de argola no nariz (não muito
comum nos idos de 2002), que andava com cabelos emaranhados e um baseado sempre
à mão. Ficamos amigas; passados uns meses, ela arrumou um namorado que tinha
cabelos ainda mais emaranhados e fazia História ou Ciências Sociais, não lembro
bem.
Enfim, vocês compreendem a cena. Não
compreendem, talvez, a confusão interior que é o pano de fundo dessas
experiências. Não entendem como é viver acreditando que o que você sente é uma
mentira, algo que você inventou para si por algum motivo torpe, um cenário
diabólico em que ora você aparece como uma menina hetero em busca de atenção e
novas experiências descoladas (que pareciam tudo menos descoladas pelos
conflitos que traziam), ora uma lésbica em permanente negação. E, às vezes, escolher
entre essas duas máscaras parece menos assustador do que encarar a verdade: não
há espaço para ser quem você é. Não aqui. “You can’t sit with
us, you can’t sit with anyone.”
Levei décadas para me sentir confortável com
dizer as palavras: “Eu sou bissexual”. De fato, essa definição é um tabu tão
grande que, em geral, eu dizia qualquer outra coisa. “Acho que gosto dos dois”,
falou um dia uma menina de 20 anos, vacilante, para uma das pessoas mais
importantes da sua vida. Uma pessoa que reagiu mal, muito mal — o que talvez tenha me enfiado de volta no
armário por mais uma temporada (ou duas, ou seis). Nessa mesma época, Gabrielly
Rodin interrompeu seu show de drag
queen para, do alto do seu
salto doze e com seus olhos felinos, apontar um microfone para o meu rosto,
enquanto uma câmera filmava minha reação de quase desmaio. “E aí, você gosta do
quê? Você gosta de menino ou de menina?”. Ao ver que eu jamais conseguiria
responder, ela se apressou em completar: “Pela sua
carinha eu acho que você gosta dos dois”. Episódio que está
catalogado nas minhas lembranças como: nunca duvidem do gaydar de Gabrielly Rodin.
O que a senhora Rodin soube com um olhar, no
entanto, eu levei bastante tempo para descobrir — ou encarar, que é uma forma de (re)descobrir. Na época da faculdade, tive algumas breves experiências com homens e mulheres, que nunca serviam para me convencer da
validade da minha própria identidade. Contrariando a ideia de que bissexuais
transam com qualquer um e o tempo todo, perdi a virgindade com 23 anos (e hoje
me parece que minha confusão com relação ao sexo se ligava um pouco à minha
incapacidade de me apaziguar com a minha orientação). Logo depois, engatei um
namoro de dois anos com um homem que se esforçou para me convencer da minha
heterossexualidade, por medo ou insegurança (sim, porque um bônus de ser bi é
poder ter um parceiro que não aceite a sua orientação, coisa que não ocorre com
heteros, gays e lésbicas). Em meio a
esse namoro, desconstruí um mito: o de que homens hetero amam mulheres bis. A verdade é que eles podem até desejá-las
com base em uma hipersexualização, ou na fantasia de um ménage, mas a maioria desses
homens não quer ter uma mulher bissexual como parceira de vida e muitos temem
serem "trocados por uma mulher" (porque afinal, o que pode existir de
pior para um homem do que ser trocado por um ser socialmente inferior a ele?).
Foram anos e anos de muita confusão mental.
De recorrer à opinião dos outros tentando esclarecer meus próprios sentimentos,
de ler tudo que eu achava sobre o assunto, de entrar e sair periodicamente do
meu armário mental, embora desde o fim do meu primeiro namoro eu já tivesse me
assumido para a maioria das pessoas próximas. De fato, posso dizer que uma das
últimas pessoas para quem eu me assumi fui eu mesma. A verdade é que me sinto
confortável com ser bi há pouco tempo. Confortável com ouvir pessoas se
referirem a mim assim, confortável ao falar sobre o assunto em mais detalhes,
confortável ao responder essa pergunta. Eu, que tenho 34 anos, que fiz
faculdade de Cinema, tenho um irmão gay assumido e sou de uma família não
conservadora. É aí que eu penso naquela segunda palavrinha dita por P.: assumida.
E me vem à cabeça uma pergunta-chave: Por que é
tão difícil para um bissexual se assumir?
Rose Quartz, personagem bissexual da animação Steven Universe, criada pela também bissexual Rebecca Sugar.
Este não é um texto didático, mas pensei em
fazer uma listinha das razões principais que tornam tudo tão difícil para nós,
e talvez ajudar uma menina como a que eu era quando tinha 16 anos — que já tem sobre mim duas vantagens: ela vive num
mundo com alguma representatividade bissexual e
provavelmente tem acesso livre e quase ilimitado à internet. Então, vamos aos
pontos principais. É difícil se assumir bissexual porque:
1) A nossa orientação é invisibilizada. Dessa forma, acabamos achando que o que estamos
sentindo não existe, é invenção da nossa cabeça, é uma ilusão. Acreditamos na
monossexualidade, achamos que precisamos escolher. Isso fica latente em cada
conversa, quando um “Eu sou bissexual” é sempre seguido de uma enxurrada de
perguntas destinadas a comprovar que você é mesmo o que diz ser, como se ser
bissexual fosse ser um agente da polícia secreta. “Você já namorou uma
mulher?”; “Com quantas mulheres e quantos homens você transou?”; “Mas o que
você prefere?”: são todas perguntas, francamente, hostis. Parem de fazer essas perguntas (em especial para pessoas que vocês não
conhecem bem);
2) Mesmo na comunidade LGBT, nós sofremos
discriminação. Pessoalmente, sempre me senti muito confortável na
comunidade LGBT, sempre acreditei que aquela ali era a minha comunidade, mas
foi ali também que muitas vezes sofri preconceito. Pergunte a uma mulher bi
sobre a experiência dela com a bifobia crônica das lésbicas e ela lhe dirá.
Homens bis sofrem ainda mais preconceito, de homens e mulheres (acredito
sinceramente que esse é um dos principais motivos pelos quais há muito mais
mulheres bis assumidas do que homens);
3) A sociedade construiu uma visão
hipersexualizada dos bissexuais. Parece que as pessoas têm dificuldades
imensas para entender o conceito, e preferem achar que a vida de uma pessoa
bissexual é uma série infinita de orgias generalizadas e fora de controle (e
seria um problema tão sério se assim fosse?). Eu tenho preguiça dessa visão
porque… já mencionei que a minha primeira transa aconteceu quando eu tinha 23
anos?;
4) Não há representatividade suficiente. E
representatividade importa e tem consequências. Grandes consequências.
Esse último ponto me leva à razão principal
para escrever essas pouco coesas linhas. Colocando
de maneira muito simples: estou escrevendo este texto porque precisava
urgentemente dele. Uns 15 anos atrás. E ninguém o escreveu. E é por causa dessa enorme falta de
representatividade que nós, bissexuais, ficamos nos escondendo em rótulos mais
reconhecíveis, que causem menos confusão àqueles que convivem conosco e às
custas, é claro, da nossa própria paz interior. Nos escondemos num discurso
vazio que corre mais ou menos assim: “Está tudo bem, eu estou superbem com o
fato de me interessar por homens e mulheres, só não quero falar sobre isso”.
Queridx, senta aqui do meu lado, deixa eu te contar uma coisa: quando você
chega no seu analista e diz “Tá tudooo bem, eu só não quero falar sobre isso”,
é sinal de quê? De que não está tudo bem. Sabe quando está tudo bem? Quando não
temos que nos esconder, quando não nos sentimos obrigados a viver em silêncio
ou a conviver com desconfortáveis meias verdades.
Então, Maria, a que conclusão você chega? Não
estava tudo bem para você, não é, moça? Mas acho que vai ficar, tem que ficar. Este texto nasce de um cansaço enorme, de uma
vontade de viver sem medo e sem culpa. De uma necessidade de sinceridade, da
vontade de abraçar longamente (logo eu, que nunca fui uma pessoa fisicamente
afetuosa) aquela menina metaleira toda vestida de preto e cheia de atitude (mas
tão perdida) que perambulava por Araruama em 1999. Um desejo de encontrar
comigo mesma para um café amigável.
Meu nome é Maria Caú, tenho 34 anos. Demorou,
mas acabei enjoando de brincar de esconde-esconde.
Pois é. Um
dia, quando eu crescer, vou escrever um texto tão lindo e corajoso como esse.
**************
E agora a
nossa indicação para esta séria série: The
L Word.
Não, amigo
leitor, você não leu errado. E não, não estou sugerindo que você reveja todos
os episódios da série original, que foi ao ar no canal Showtime (no Brasil,
pela Warner Channel) de 2004 a 2009... e sim, de uma continuação que virá por
aí. E agora a
nossa indicação para esta séria série: The
L Word.
Não, amigo
leitor, você não leu errado. E não, não estou sugerindo que você reveja todos
os episódios da série original, que foi ao ar no canal Showtime (no Brasil,
pela Warner Channel) de 2004 a 2009... e sim, de uma continuação que virá por
aí.
Está aí o Estadão que não nos deixa mentir.
'The
L Word' ganhará continuação
REDAÇÃO - O ESTADO DE S.PAULO
11/07/2017, 16:57
Três
atrizes da série original farão parte da sequência
A série 'The L Word' foi
transmitida entre 2004 e 2009. Foto: Reprodução de cartaz 'The L Word'
The L Word, série que saiu do ar em 2009, ganhará uma continuação. Segundo o Deadline, o programa, transmitido pelo canal Showtime, terá três atrizes do elenco original: Jennifer Beals (Bette), Kate Moennig (Shane) e Leisha Hailey (Alice).
A ideia é que as personagens sejam uma ponte entre a trama anterior e a sequência. Outros atores que participaram da série, que foi exibida entre 2004 e 2009, podem apareceu durante a nova temporada.
A história é sobre um grupo de lésbicas que vivem em Hollywood, seus amantes e suas famílias. Ilene Chaiken, criadora da série, será a produtora executiva da sequência. Ainda não há data de lançamento para a nova temporada de The L Word.
Se ainda
não voltou, por que estou indicando?
Simples:
para que as boas vibrações (minhas e suas) sejam enviadas a Ilene Chaiken,
criadora e produtora executiva da série, para que vá adiante – sabe como é, de
boas intenções o inferno dos projetos que não vão adiante está cheio.
Torçam
muito para a volta de The L Word.
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