16 julho, 2017

DA SÉRIA SÉRIE "FILMES QUE JAIR BESTEIRARO ET CATERVA A-DO-RA-RI-AM..." (LXII)

Ninguém sabe, mas sou uma pessoa rica. Não, não de dinheiro. Mas de amigos. Ter amigos é bem mais valioso do que ter conta nas Ilhas Cayman.
Uma destas amigas é Maria Caú, que escreveu um texto magnífico no Mulheres que Escrevem, do Mediumque eu faço questão de compartilhar com vocês que acompanham esta séria série.
Lá vai.

Quem tem medo de (se) dizer bissexual?

Minha longa jornada rumo à autoaceitação
Maria Caú
Formada em Cinema, doutoranda em Literatura Comparada, autora de "Olhar o mar: Woody Allen e Philip Roth - a exigência da morte", viciada em café e Netflix.
Jun 26

Entendeu? Ela não está indecisa.
(Foto de Bruno Poletti/Folhapress)

Aviso: esse é um artigo sobre “coming out”.
Começar este texto é, ao mesmo tempo, extremamente difícil e terrivelmente natural. Difícil porque preciso lidar mais uma vez com a possibilidade de me expor abertamente e as consequências imprevisíveis deste ato. Natural porque já comecei este texto muitas vezes, de diferentes formas, com muitos estilos e, ainda assim, ele jamais ganhou um ponto final e nunca deixou as pastas mais escondidas do meu laptop. Tenho, primeiro e mais uma vez, que lidar com um fato: talvez eu não tenha coragem de publicar o que estou escrevendo por impulso e por necessidade. Talvez. Se for assim, serei minha única leitora e tentarei ser bastante gentil comigo desta vez. É um processo lento e duro. Agora, se você está lendo isso, significa que tive coragem. Estou orgulhosa da minha coragem, se for este o caso. Mas sigo feliz de estar escrevendo, de qualquer maneira, ainda que estas linhas nunca sejam lidas por um Outro. “É preciso imaginar Sísifo feliz”, já disse Camus.
Vamos começar por onde sei começar, ainda que não seja o começo. [Se você se sentir confuso e atordoado lendo isso aqui, saiba que é justo esta a sensação que eu quis trazer à tona.] Dias atrás, P., antropóloga e minha amiga há 20 anos, deixou escapar durante um almoço: “Acho que você é a única pessoal bissexual assumida que eu conheço”, afirmação que primeiro me surpreendeu, depois me assustou. Pensei muito nessas duas palavras: bissexual/assumida.
Bissexual. Sim, eu sou bissexual. [Pausa para um suspiro porque escrever isso assim é um alívio tormentoso]. Acho que sempre foi assim. Tenho a vaga recordação de ter uns 12 anos e me autocensurar ao andar pela rua porque eu não deveria estar olhando para homens e mulheres com o mesmo nascente interesse. O mais louco é que, para mim, o grande problema então não era olhar para mulheres, mas olhar para ambos nesse ponto, a sociedade já tinha me vencido: eu já acreditava que não havia lugar para um olhar como o meu. Hoje, 22 anos depois, ainda me surpreendo com a capacidade dos meus olhos de se deterem em belezas muitas vezes tão contrastantes, e é engraçado perceber a facilidade com que a minha atenção se desvia, num carro de metrô, daquele cara barbudo de camisa social indo pro trabalho para aquela moça de dreads e camiseta dos Ramones. Demorei a aprender a conviver com essa elasticidade do olhar e demorei mais ainda para me orgulhar dela.

Coração com símbolo dos bissexuais

Vamos culpar o mundo em que eu cresci? Nasci em 1983 e morei até os 19 anos em Araruama, uma cidade que seria do interior, não fosse a praia e a proximidade com o Rio de Janeiro. No mundo em que me tornei adolescente, não existia essa coisa de bissexualidade. Mentira. Tinha o David Bowie, é verdade. Mas embora eu adore o David Bowie e o agradeça por trazer a palavra para o meu vocabulário, é meio difícil para uma adolescente que mora numa chácara se identificar com o David Bowie. “O cara é uma estrela do rock, eles não seguem as mesmas regras de todo mundo”, pensava eu, que continuava acreditando piamente que era preciso escolher.
Parecia uma escolha simples. Claramente, eu me sentia atraída por garotos desde cedo, então essa deveria ser uma negociação bem fácil comigo mesma. A atração que sentia por meninas, no entanto, me confundia, e por um bom tempo tive sucesso em não pensar mais profundamente no assunto. Até o dia em que fui visitar D., um dos meus melhores amigos da época, a pessoa com quem eu bebia tequila e fumava escondido, jogava RPG e amaldiçoava a existênciacoisas típicas dos 16, 17 anos. Me recordo perfeitamente a cena. Eu parada na sala dele, D. diz: Minha prima taí” e quase que instantaneamente desce as escadas uma moça ruiva, um ou dois anos mais velha do que eu, numa camiseta branca dos Rolling Stones. Nunca me esqueci daquela camiseta branca dos Rolling Stones. Foi um daqueles momentos em que você sente que os seus pensamentos estão aparecendo num balão de quadrinhos, em negrito, bem em cima da sua cabeça: “Tá todo mundo notando?”. O nome dela era Renata. Minha mãe se chama Renata, eu casei com um Renatoacho que o nome me persegue.
Nada mais aconteceu: sem clímax nessa trama, além do fato de a heroína ter tido imensas dificuldades para justificar seus sentimentos repentinos face à sua heterossexualidade proclamada. E assim vamos, meus amigos. Por anos. Anos. Eu digo sempre que a bissexualidade é um eterno sair do armário, mesmo que seja só para você mesma. Heterossexuais não precisam se assumir, gays se assumem um par de vezes. Bissexuais vão se assumir por uma vida inteira. E assim foi. 19 anos, prestes a entrar na faculdade, conheci um cara mais velho, me apaixonei, tive meu coração partido, tudo pela primeira vez, porque sou desses late bloomers da vida. (Pausa para um parêntesis deste escriba chato, para esclarecer a quem não domina o inglês o que é um late bloomer: "Pessoa que ainda não amadureceu; que ainda não desabrochou; que tem desenvolvimento tardio; que começou a amadurecer tarde". Fim do parêntesis. Vai, amiga.) Meses depois me encantei por uma colega de sala da UFF. Ela era uma hiponga de piercing de argola no nariz (não muito comum nos idos de 2002), que andava com cabelos emaranhados e um baseado sempre à mão. Ficamos amigas; passados uns meses, ela arrumou um namorado que tinha cabelos ainda mais emaranhados e fazia História ou Ciências Sociais, não lembro bem.
Enfim, vocês compreendem a cena. Não compreendem, talvez, a confusão interior que é o pano de fundo dessas experiências. Não entendem como é viver acreditando que o que você sente é uma mentira, algo que você inventou para si por algum motivo torpe, um cenário diabólico em que ora você aparece como uma menina hetero em busca de atenção e novas experiências descoladas (que pareciam tudo menos descoladas pelos conflitos que traziam), ora uma lésbica em permanente negação. E, às vezes, escolher entre essas duas máscaras parece menos assustador do que encarar a verdade: não há espaço para ser quem você é. Não aqui. “You can’t sit with us, you can’t sit with anyone.”
Levei décadas para me sentir confortável com dizer as palavras: “Eu sou bissexual”. De fato, essa definição é um tabu tão grande que, em geral, eu dizia qualquer outra coisa. “Acho que gosto dos dois”, falou um dia uma menina de 20 anos, vacilante, para uma das pessoas mais importantes da sua vida. Uma pessoa que reagiu mal, muito malo que talvez tenha me enfiado de volta no armário por mais uma temporada (ou duas, ou seis). Nessa mesma época, Gabrielly Rodin interrompeu seu show de drag queen para, do alto do seu salto doze e com seus olhos felinos, apontar um microfone para o meu rosto, enquanto uma câmera filmava minha reação de quase desmaio. “E aí, você gosta do quê? Você gosta de menino ou de menina?”. Ao ver que eu jamais conseguiria responder, ela se apressou em completar: “Pela sua carinha eu acho que você gosta dos dois”. Episódio que está catalogado nas minhas lembranças como: nunca duvidem do gaydar de Gabrielly Rodin.
O que a senhora Rodin soube com um olhar, no entanto, eu levei bastante tempo para descobrir ou encarar, que é uma forma de (re)descobrir. Na época da faculdade, tive algumas breves experiências com homens e mulheres, que nunca serviam para me convencer da validade da minha própria identidade. Contrariando a ideia de que bissexuais transam com qualquer um e o tempo todo, perdi a virgindade com 23 anos (e hoje me parece que minha confusão com relação ao sexo se ligava um pouco à minha incapacidade de me apaziguar com a minha orientação). Logo depois, engatei um namoro de dois anos com um homem que se esforçou para me convencer da minha heterossexualidade, por medo ou insegurança (sim, porque um bônus de ser bi é poder ter um parceiro que não aceite a sua orientação, coisa que não ocorre com heteros, gays e lésbicas). Em meio a esse namoro, desconstruí um mito: o de que homens hetero amam mulheres bis. A verdade é que eles podem até desejá-las com base em uma hipersexualização, ou na fantasia de um ménage, mas a maioria desses homens não quer ter uma mulher bissexual como parceira de vida e muitos temem serem "trocados por uma mulher" (porque afinal, o que pode existir de pior para um homem do que ser trocado por um ser socialmente inferior a ele?).
Foram anos e anos de muita confusão mental. De recorrer à opinião dos outros tentando esclarecer meus próprios sentimentos, de ler tudo que eu achava sobre o assunto, de entrar e sair periodicamente do meu armário mental, embora desde o fim do meu primeiro namoro eu já tivesse me assumido para a maioria das pessoas próximas. De fato, posso dizer que uma das últimas pessoas para quem eu me assumi fui eu mesma. A verdade é que me sinto confortável com ser bi há pouco tempo. Confortável com ouvir pessoas se referirem a mim assim, confortável ao falar sobre o assunto em mais detalhes, confortável ao responder essa pergunta. Eu, que tenho 34 anos, que fiz faculdade de Cinema, tenho um irmão gay assumido e sou de uma família não conservadora. É aí que eu penso naquela segunda palavrinha dita por P.: assumida. E me vem à cabeça uma pergunta-chave: Por que é tão difícil para um bissexual se assumir?

Rose Quartz, personagem bissexual da animação Steven Universe, criada pela também bissexual Rebecca Sugar.

Este não é um texto didático, mas pensei em fazer uma listinha das razões principais que tornam tudo tão difícil para nós, e talvez ajudar uma menina como a que eu era quando tinha 16 anosque já tem sobre mim duas vantagens: ela vive num mundo com alguma representatividade bissexual e provavelmente tem acesso livre e quase ilimitado à internet. Então, vamos aos pontos principais. É difícil se assumir bissexual porque:

1) A nossa orientação é invisibilizada. Dessa forma, acabamos achando que o que estamos sentindo não existe, é invenção da nossa cabeça, é uma ilusão. Acreditamos na monossexualidade, achamos que precisamos escolher. Isso fica latente em cada conversa, quando um “Eu sou bissexual” é sempre seguido de uma enxurrada de perguntas destinadas a comprovar que você é mesmo o que diz ser, como se ser bissexual fosse ser um agente da polícia secreta. “Você já namorou uma mulher?”; “Com quantas mulheres e quantos homens você transou?”; “Mas o que você prefere?”: são todas perguntas, francamente, hostis. Parem de fazer essas perguntas (em especial para pessoas que vocês não conhecem bem);

2) Mesmo na comunidade LGBT, nós sofremos discriminação. Pessoalmente, sempre me senti muito confortável na comunidade LGBT, sempre acreditei que aquela ali era a minha comunidade, mas foi ali também que muitas vezes sofri preconceito. Pergunte a uma mulher bi sobre a experiência dela com a bifobia crônica das lésbicas e ela lhe dirá. Homens bis sofrem ainda mais preconceito, de homens e mulheres (acredito sinceramente que esse é um dos principais motivos pelos quais há muito mais mulheres bis assumidas do que homens);

3) A sociedade construiu uma visão hipersexualizada dos bissexuais. Parece que as pessoas têm dificuldades imensas para entender o conceito, e preferem achar que a vida de uma pessoa bissexual é uma série infinita de orgias generalizadas e fora de controle (e seria um problema tão sério se assim fosse?). Eu tenho preguiça dessa visão porque… já mencionei que a minha primeira transa aconteceu quando eu tinha 23 anos?;

4) Não há representatividade suficiente. E representatividade importa e tem consequências. Grandes consequências.
Esse último ponto me leva à razão principal para escrever essas pouco coesas linhas. Colocando de maneira muito simples: estou escrevendo este texto porque precisava urgentemente dele. Uns 15 anos atrás. E ninguém o escreveu. E é por causa dessa enorme falta de representatividade que nós, bissexuais, ficamos nos escondendo em rótulos mais reconhecíveis, que causem menos confusão àqueles que convivem conosco e às custas, é claro, da nossa própria paz interior. Nos escondemos num discurso vazio que corre mais ou menos assim: “Está tudo bem, eu estou superbem com o fato de me interessar por homens e mulheres, só não quero falar sobre isso”. Queridx, senta aqui do meu lado, deixa eu te contar uma coisa: quando você chega no seu analista e diz “Tá tudooo bem, eu só não quero falar sobre isso”, é sinal de quê? De que não está tudo bem. Sabe quando está tudo bem? Quando não temos que nos esconder, quando não nos sentimos obrigados a viver em silêncio ou a conviver com desconfortáveis meias verdades.
Então, Maria, a que conclusão você chega? Não estava tudo bem para você, não é, moça? Mas acho que vai ficar, tem que ficar. Este texto nasce de um cansaço enorme, de uma vontade de viver sem medo e sem culpa. De uma necessidade de sinceridade, da vontade de abraçar longamente (logo eu, que nunca fui uma pessoa fisicamente afetuosa) aquela menina metaleira toda vestida de preto e cheia de atitude (mas tão perdida) que perambulava por Araruama em 1999. Um desejo de encontrar comigo mesma para um café amigável.
Meu nome é Maria Caú, tenho 34 anos. Demorou, mas acabei enjoando de brincar de esconde-esconde.

Pois é. Um dia, quando eu crescer, vou escrever um texto tão lindo e corajoso como esse.

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E agora a nossa indicação para esta séria série: The L Word.
Não, amigo leitor, você não leu errado. E não, não estou sugerindo que você reveja todos os episódios da série original, que foi ao ar no canal Showtime (no Brasil, pela Warner Channel) de 2004 a 2009... e sim, de uma continuação que virá por aí. E agora a nossa indicação para esta séria série: The L Word.
Não, amigo leitor, você não leu errado. E não, não estou sugerindo que você reveja todos os episódios da série original, que foi ao ar no canal Showtime (no Brasil, pela Warner Channel) de 2004 a 2009... e sim, de uma continuação que virá por aí.
Está aí o Estadão que não nos deixa mentir.

'The L Word' ganhará continuação 

REDAÇÃO - O ESTADO DE S.PAULO
11/07/2017, 16:57
Três atrizes da série original farão parte da sequência


A série 'The L Word' foi transmitida entre 2004 e 2009. Foto: Reprodução de cartaz 'The L Word'

The L Word, série que saiu do ar em 2009, ganhará uma continuação. Segundo o Deadline, o programa, transmitido pelo canal Showtime, terá três atrizes do elenco original: Jennifer Beals (Bette), Kate Moennig (Shane) e Leisha Hailey (Alice).
A ideia é que as personagens sejam uma ponte entre a trama anterior e a sequência. Outros atores que participaram da série, que foi exibida entre 2004 e 2009, podem apareceu durante a nova temporada. 
A história é sobre um grupo de lésbicas que vivem em Hollywood, seus amantes e suas famílias. Ilene Chaiken, criadora da série, será a produtora executiva da sequência. Ainda não há data de lançamento para a nova temporada de The L Word.

Se ainda não voltou, por que estou indicando?
Simples: para que as boas vibrações (minhas e suas) sejam enviadas a Ilene Chaiken, criadora e produtora executiva da série, para que vá adiante – sabe como é, de boas intenções o inferno dos projetos que não vão adiante está cheio.
Torçam muito para a volta de The L Word.

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