Até o dia 23 de julho último, pensávamos que a Constituição brasileira ainda estava em vigor. Mais especificamente, os dispositivos abaixo:
Título II: dos direitos e garantias fundamentais
Capítulo I, dos direitos e deveres individuais.
Artigo 5° - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
Inciso IX: É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Infelizmente, nesta data, o DEM decidiu – seguindo os ensinamentos dos fanáticos do Tea Party dos EUA – revogar temporariamente este inciso. Tudo por mera politicagem.
Um breve comunicado da equipe do RioFan (festival de cinema fantástico e de terror, no Rio de Janeiro):
"Senhor Produtor,
"Informamos que, por decisão da Caixa Econômica Federal, o filme A Serbian Film – Terror sem Limites deverá ser retirado da programação da mostra RIOFAN, em cartaz na CAIXA Cultural RJ e patrocinada por essa Instituição.”
"Não tivemos maiores esclarecimentos sobre o que levou à decisão. Nossa surpresa diante do veto foi ainda maior por sabermos que o filme em questão já foi exibido em dois diferentes festivais brasileiros há poucas semanas.
"Diante deste fato, não temos opções se não abrir mão da exibição do filme do diretor Srdjan Spasojevic no contexto do festival - um filme premiado e exibido em alguns dos maiores festivais internacionais dedicados a cinema de gênero no mundo, além de festivais convencionais, entre eles:
- South by Southwest (Austin, EUA)
- Festival Internacional do Filme de Fantasia (Bruxelas, Bélgica)
- Fantasia (Montreal, Canadá)
- Raindance (Londres, Inglaterra)
- Fantasporto (Porto, Portugal)
- Festival de Sitges (Sitges, Espanha)
- Fantaspoa (Porto Alegre, Brasil)
- Festival Lume (São Luís, Brasil)
"Lamentamos profundamente a decisão e gostaríamos de aproveitar o ocorrido para expressar nossa opinião sobre o filme.
"A Serbian Film é, sem sombra de dúvida, um dos filmes mais polêmicos de todos os tempos, e não sem razão: é uma obra que questiona os limites da representação cinematográfica e que lida com situações e temas absolutamente condenáveis.
"As matérias veiculadas pela imprensa brasileira sobre o conteúdo do filme dão a entender, porém, que o filme apresenta cenas de pedofilia e necrofilia explícitas - o que não é verdade. Todas as cenas em questão são obviamente sugeridas e orquestradas por uma montagem que as integra numa narrativa dramática e séria cujo intuito é claramente denunciar a crise moral que se abateu sobre o país após a sangrenta guerra vivida na década de 1990, momento em que vidas humanas eram descartadas sem o menor pudor.
"Não há, sob qualquer ótica possível, apologia à violência sexual contra mulheres ou menores de idade no filme. São atos absolutamente grotescos e tratados como tal por uma obra que se insere numa tradição de filmes “extremos” - um subgênero do cinema de horror que lida com questões repulsivas de forma radical, com o intuito de buscar o choque e a reflexão nos espectadores. Vale lembrar que a fonte de inspiração destes filmes é a experiência humana - em seus aspectos mais vis e depravados, por certo, mas não menos humanos, infelizmente.
"O RioFan é radicalmente contra qualquer forma de censura - um mal que assolou nosso país durante décadas e contra o qual muitos deram o próprio sangue para extirpá-lo do Brasil. Somos a favor da total e irrestrita liberdade de expressão, pedra de toque de qualquer sociedade democrática. Somos defensores do cinema de horror em suas mais diversas vertentes e acreditamos que filmes como A Serbian Film têm um papel importante ao trazer à tona os horrores que compõem o material de nossos pesadelos coletivos. Ao programar A Serbian Film, acreditamos que, assim como o filme, estamos condenando explicitamente a prática da violência sexual em todas as suas vertentes e modalidades.
"De nossa parte, gostaríamos ainda de dizer que temos a liberação de todos os programas do festival pelos órgãos competentes e que todos os filmes programados têm classificação indicativa para maiores de 18 anos.
"Para finalizar, gostaríamos de anunciar que o Grupo Estação, em parceria com a distribuidora Petrini Filmes, irá promover uma sessão extraordinária de A Serbian Film no Cine Odeon, às 22h do próximo sábado, dia 23 de julho. É a chance de todos assistirem ao filme e tirarem suas próprias conclusões.
Equipe RioFan 2011"
Resumo da ópera (1º ato): matérias errôneas e sensacionalistas da grande mídia (também chamada por Paulo Henrique Amorim, com certa e justa razão, de "PiG - Partido da Imprensa Golpista"), como a de O Globo e da Folha de S. Paulo – cujo dono, Otávio Frias Filho, sonha em transformá-lo numa versão em papel jornal da Veja – e a ação de grupos pseudo-falso-moralistas, adeptos do método de análise artística conhecido como "não vi e não gostei", pressionaram a Caixa para retirar tal filme da programação do RioFan. E a Caixa obedeceu.
Bem, não vi A Serbian Film, portanto não posso dizer se gosto ou não do filme - afinal, só se pode gostar ou não de uma obra artística se a conhecemos.
E não poderei ver para julgá-la. Cortesia da filial do Tea Party no Brasil, chamada DEM, igualmente adepta do método "não vi e não gostei" de análise artística.
Resumo da ópera (2º ato): aos 45 minutos do segundo tempo – isto é, em cima da hora – o diretório regional do DEM entrou com pedido de liminar na justiça, proibindo a sessão de A Serbian Film e apreendendo a cópia.
A distribuidora do filme, Petrini Filmes, entrou com recurso no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O recurso é negado pela desembargadora de plantão
As razões (não vale rir, que é para chorar):
Sem dúvida, em que pese a afirmativa dos Agravantes de que o filme não trata de pedofilia, erotismo e exploração sexual envolvendo menores, é de cautela que haja uma análise acurada do conteúdo da obra para aferir e evitar eventuais prejuízos aos jovens em formação e à sociedade como um todo. (Quais os "eventuais prejuízos" para pessoas maiores de 18 anos, já que era esta a classificação indicativa do filme: não recomendado para menores de 18 anos – e quando um filme tem esta classificação, adolescentes não entram num cinema nem a muque.)
Não se pode admitir e permitir que, em nome da liberdade de expressão, cenas de extrema violência física e moral (...) sejam levados ao grande público, uma vez que podem provocar reações adversas, às vezes, em cadeia, em pessoas sem equilíbrio emocional e psíquico adequado para suportar tais evidências de desumanidade.
Ou seja: para a desembargadora, eu, você e as torcidas do Flamengo, Corínthians etc., etc. – isto é, todos nós – somos um bando de desequilibrados emocionais, inaptos e incapazes para julgar uma obra artística.
Talvez, nem a juíza, nem a desembargadora, nem o DEM o sejam, pois determinaram a proibição de A Serbian Film SEM ASSISTIR O FILME.
Lembra, e muito, a história de Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos. Em 1955, sem assistir o filme (guiando-se por informações de um amigo, cujo nome nunca foi revelado), o coronel Geraldo Menezes Cortes, chefe de polícia, proibiu a sua exibição em território nacional. As razões apresentadas são tão estapafúrdias quanto as atuais para a proibição de A Serbian Film:
Este filme tem como fim a desagregação do país, e foi feito com tal habilidade que serve aos interesses políticos do extinto Partido Comunista. (Só porque Nelson era filiado ao PCB, na época?)
O filme é um incentivo à vagabundagem, não aparece ninguém trabalhando. (O que é compreensível, pois o filme se passa num domingo. Mesmo assim, há pessoas trabalhando: os jogadores de futebol, os meninos vendedores de amendoim...)
Meninos soltos pelas ruas, vendendo amendoim ou pedindo esmolas, supostamente para sustentar suas famílias... isso é uma falácia, isso não existe. (Precisa comentar? Até hoje existe isso...)
O filme é sacrílego. Há um verso da música-tema deste filme dizendo "eu sou o rei dos terreiros" – ou seja, uma clara propaganda da feitiçaria e do candomblé. Um acinte à Santa Madre Igreja Católica e ao temperamento cristão do povo brasileiro. ("Terreiro" também designa o lugar onde os compositores de samba se reúnem para mostrar as suas composições – já ouviram falar de "samba de terreiro", hoje chamado "samba de quadra"? Ainda assim, a Constituição de 1946, bem como as Cartas posteriores, inclusive a atual, definem o país como um Estado laico, com liberdade de culto.)
O filme é uma tentativa de desmoralizar a meteorologia. O titulo "Rio 40 Graus" é mentiroso porque aqui na Capital Federal a temperatura máxima nunca passou dos 30,7 graus. (Se você, que já esteve no Rio de Janeiro durante o verão, quiser rir, pode rir...)
Finalmente...
Recentemente apreendemos dois filmes tchecos com uma técnica perfeita, igual a este filme. Logo só podemos concluir que Rio, 40 Graus foi feito com o auxílio financeiro e técnico do movimento comunista internacional.
(Rio, 40 graus foi realizado com poucos recursos – a câmera utilizada no filme era uma câmera antiga e enguiçada, cedida pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo – INCE, por seu diretor técnico Humberto Mauro, e consertada por seu diretor de fotografia, Hélio Silva – em regime de cooperativa. Mas para o coronel Menezes Cortes, isso parecia não importar: para ele, filme brasileiro legítimo tinha de ser mal-feito, esculhambado, feito nas coxas, com o perdão do termo. Porque um filme brasileiro apresenta uma técnica perfeita, ao invés de merecer elogios de autoridades, é perseguido por elas, porque acham que o cineasta brasileiro típico tem de ser obrigatoriamente esculhambado, e que filme brasileiro tecnicamente perfeito é "coisa de comunista". Ou seja, o cinema brasileiro não poderia buscar a evolução técnica do cinema brasileiro, porque isso seria “traição à pátria” ou “cumplicidade com o comunismo internacional”. Fica a dúvida: o coronel queria combater o comunismo ou o cinema brasileiro?)
Diante de tão “inteligente” acusação, uma campanha da intelectualidade e da imprensa lutou com unhas e dentes, não só pela liberação do filme – o que ocorreu em 1956, por sentença do STF – mas pela liberdade de expressão.
Ah, um detalhe: o coronel Menezes Cortes era ligado á UDN e ao Clube da Lanterna, de Carlos Lacerda et caterva.
E agora o DEM – mostrando-se digno herdeiro das mais ínclitas tradições do Clube da Lanterna (e nascido de uma das costelas da ARENA, o partido da situação do regime militar) – repete a façanha de seus antecessores. Pelo mesmo pretexto: defesa da moralidade. E pela mesma razão: politicagem.
É que entre os alvos da ação judicial do DEM, estava a Petrobras.
Ué, o que diabos a Petrobras tem a ver com o peixe?
Simples: o Odeon Petrobras – o cinema em que seria exibido A Serbian Film – é o único cinema do Grupo Estação patrocinado pela petroleira.
E a petroleira é uma empresa cujo acionista majoritário é o governo federal – governo contra qual o DEM faz oposição cerrada. E, na maioria das vezes, sem se embaraçar com métodos, tal qual Lacerda.
Será esta a primeira mostra do que seria a futura candidatura à prefeitura do Rio de Janeiro, nascida da aliança espúria entre o psicopata Cesar Maia e o narcisista truculento Anthony Gargantinho?
E a justiça? Quando é que vai processar criminalmente o psicopata Cesar Maia?
Motivo? Olha aqui o Código Penal:
Prevaricação
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
Este é o termo legal pela sua criminosa omissão durante a epidemia de dengue em 2008, por duas razões mesquinhas: a) não precisar atrasar a construção de sua pirâmide de faraó chamada Cidade da Música; 2) não precisar pedir ajuda aos governos estadual e federal, para não deixar sua postura de ferrenho oposicionista a ambos.
Isso é um caso que o Ministério Público – mesmo que censurou uma obra artística a pedido do DEM – precisa resolver. No momento, o que podemos fazer é combater o bom combate, acabar a carreira e guardar a fé – na liberdade de expressão, claro.
P.S.: Pensando bem, poderia ter simplesmente posto aqui link para o nobre colega Daniel Caetano, que escreveu texto mais curto e mais certeiro sobre este mesmo assunto, do que escrever este texto longo. Faz mal não.
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